quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Paul McCartney

     
        Desde minha adolescência, quando comecei a ouvir Beatles, aguardava ansiosamente um dia poder presenciar um show de um dos três ex-integrantes até então vivos (infelizmente, tempos depois o George se foi). Ontem (26/11), em São Paulo, no belíssimo novo estádio do Palmeiras, consegui finalmente ver ao vivo um show de um Beatle. E que show!
            Paul McCartney fez mais um show antológico em sua carreira. É um dos poucos artistas clássicos que consegue perfeitamente aliar alta tecnologia com a música de ontem e de hoje. É de babar a precisão cirúrgica dele ao sincronizar os avanços tecnológicos com a arte construída por ele, sejam as canções da carreira solo ou conjuntamente as com os Beatles.
            Live and Let Die certamente foi o ápice entre tecnologia e música na apresentação de Paul. Apesar dos sedutores fogos estrategicamente utilizados e seduzindo com a estética do fogo a atenção das pessoas, a música não saía da mente de quem a recebia. Sem dúvida, Live and Let Die ao vivo é um grande espetáculo visual e sonoro. Arrepia até o mais insensível.
            Para falar de outra gigante canção do show, difícil foi alguém ficar parado quando o inglês começou a empolgante onomatopeia africana Ob-la-di Ob-la-da. Minha perna e a de muitos outros, depois de quase duas horas de show e mais um tempinho de fila, já estavam cansadas a níveis de pedir um banco para repouso, no entanto, Ob-la-di Ob-la-da veio como um bálsamo e repôs a energia coletiva. Impossível ficar sem pular. Mais um momento do show que arquivo na memória e no coração. Foi catártico!
            E quanto ao carisma? Falar do carisma do Paul é chover no molhado. Ele nunca abre mão de ser o que é. Se lançou em frases ditas em português e arriscou, inclusive, gírias. Interagiu sem forçar, sem ser pedante. Em um curto espaço de tempo, Paul fez parte total do país anfitrião.
            O poder de um Beatle como McCartney fica claro na plateia. Não me recordo de um artista clássico, com mais de 50 anos só de estrada, que consiga unir gerações distintas de mais de meio século em grande número. Crianças uniformizadas com camisetas dos Beatles ou do Paul, adolescentes, adultos e idosos compuseram homogeneamente o público. E melhor: todos cantando. Foram a segunda voz das canções e, em certos momentos, como Hey Jude, o público se tornou a voz única, um coral beatlemaníaco nas terras do carnaval.
            A noite que começou no dia 26 e terminou no 27, inclusive com uma suave e até sincronizada garoa,  jamais esquecerei. Gosto imensamente de música. Passar pela vida sem presenciar um show de um Beatle seria, para mim, viver musicalmente com uma oceânica lacuna. Agora, felizmente, a lacuna foi preenchida com letras e acordes de um dos meus maiores ídolos musicais: Paul McCartney.
Vitor Miranda

domingo, 9 de novembro de 2014

Público vulnerável

            A série televisiva Mad Men faz uma profunda abordagem da publicidade nos idos de 1960 nos EUA a respeito do cigarro. O público-alvo evidentemente é o adulto. A série demonstra como manipular o comportamento das pessoas a fim de se atingir os atuais e futuros fumantes. Explicita a vunerabilidade do adulto quanto à propaganda. Se assim é com este público, com o infantil a publicidade fica ainda mais séria, uma vez que nesta etapa da vida há mais imaturidade e menos poder crítico para se fazer um juízo de valor. Dessa forma, medir e permitir a publicidade infantil torna-se um desafio tanto de ordem governamental quanto familiar.
            É de responsabilidade do Estado permitir ou não certas publicidades infantis. Muitas vezes empresas exploram, principalmente na televisão, pois esta ainda é o maior meio de comunicação no Brasil, ideias positivas a respeito de certos produtos como refrigerante  e salgadinhos, produtos que, consumidos exacerbadamente, causam danos à saúde. É dever do Estado exigir que tais propagandas apresentem os malefícios do produto e limite seus horários e exibição nos meios comunicativos, porque elas ao exibirem crianças felizes e saudáveis vendem uma imagem falsa da consequência do consumo dos produtos veiculados.
            Além do Estado, cabe à família um poder de fiscalização e permissão diante as propagandas. De nada adianta o Governo estabelecer limites à publicidade infantil se pais acabam sendo sensibilizados por toda propaganda e pedidos dos filhos. A família também precisa complementar o trabalho do Estado. Ainda que empresas respeitem as imposições da lei, pai e mãe precisam ter o senso crítico de evitar que os filhos fiquem sujeitos a certas publicidades. São os pais que devem gerenciar as crianças e ensiná-las a fazer escolhas e, dessa forma, diminuir a chance de serem vítimas do marketing negativo e predatório.
            Mesmo a publicidade infantil sendo um grande desafio, é possível sair dessa batalha com um resultado positivo. Se o Estado e família derem as mãos e caminharem juntos nesse combate, a situação futuramente será positiva. Cabe àquele aplicar leis regulamentando propagandas e aplicar multas severas a empresas que ferirem os vetos. Já a família cabe fazer a fiscalização final e analisar que suportes comunicativos são, de fato, viáveis ao filho. Dessa forma, portanto, não abriremos espaço para que amanhã surja um Mad Men cujos protagonistas sejam as crianças.


Vitor Miranda

domingo, 30 de março de 2014

Lars escreve certo por linhas tortas

Sair do conforto da linearidade não é para todos. Abandonar o que pensamos, condicionados ou não, força-nos a tentar uma das máximas de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) "aprender a desaprender". Incorporamos uma série de costumes ligados ao cultural ou à moralidade. Muito do que nos é passado pode e deve ser contestado. Ao assistir recentemente ao tão esperado e já polêmico filme Ninfomaníaca, volume I e II, de Lars von Trier, foi nítido ilustrar tudo isso que afirmei no começo desse texto.
            Lars jorra no filme diversos pensamentos, preconceitos e anseios de uma sociedade que ainda tenta ocultar seus próprios defeitos. A câmera mostra o que os olhos do cotidiano cegam por vontade ou alienação.
            Metáforas dão um magnífico alicerce ao filme. Se tudo ali fosse literal, para nossa tristeza e um empobrecimento cinematográfico, teríamos um documentário. Não quero dizer que documentários não prestam, não têm qualidade. Apenas são um gênero não combinável com von Trier.
            Vi poucos filmes dele. Vejo nesse, de fato, um artista. E nem comento aqui a costura genial das diversas intertextualidades no filme que passam, por exemplo, pelas artes plásticas, filosofia e música.
            Uma grande obra abre-se para leituras diversas. Ninfomaníaca é um exemplo. As quatro horas de filme, divididas nos dois volumes, convidam-nos para um olhar crítico perturbador.
            Acredito que o título engana quem se contenta com o conceito dele. A narrativa não protagoniza o vício feminino por sexo. Pelo contrário, expõe o vício masculino. Homem, a maioria, não diz "não" ao que mais o determina como macho. Há uma predisposição para olharmos a mulher como a sem vergonha, tarada, vagabunda, imoral etc. E quanto ao homem?
            O sexo no enredo é o combustível para revelar o machismo, aceito pela moral implícita ou explícita.
            Em um país como o Brasil, onde uma recente pesquisa indica que 65% dos entrevistados julgam a mulher como culpada pela violência sexual recebida, Ninfomaníaca é um prato cheio aqui para nos atestar o machismo e a mentalidade moralista. Recusamos a crítica democrática entre os sexos. Quem não presta é ela, ora!
            Estou até agora batendo palmas para Lars von Trier.


            Vitor Miranda

quinta-feira, 27 de março de 2014

Álbum Despedaçado

Família, família, papai, mamãe, titia / Família almoça junto todo dia e nunca perde essa mania. Esses versos de uma conhecida música do grupo Titãs retrata uma típica família sempre junta em seu cotidiano. Isso, no entanto, não é o que se pode afirmar a respeito do grande filme Álbum de Família, do diretor John Wells. Na história, a matriarca da família – Violet Weston (Meryl Streep) – está com câncer e suas três filhas, entre elas Barbara (Julia Roberts), diante dessa situação e do desaparecimento do pai, se veem na quase obrigação de voltar à casa materna  para fazer, digamos, o social ou diminuir uns numerosos pesos de consciência. Moram longe, afastadas da mãe e do pai. O problema ao rebento é aguentar a língua afiada e ácida de Violet, que mesmo sendo consumida pelo câncer de boca, dispara sem trégua seu arsenal verbal contra todos. Trata-se de uma oportuna ocasião para externar quem é quem de fato nessa célula social doente.
            É um filme em que a voz feminina toma conta de todo o universo ali criado. Não é exagero apontar semelhanças entre seu enredo e algumas histórias do livro Laços de Família, de Clarice Lispector, especialmente ao genial conto Feliz Aniversário. No conto, Clarice narra uma festa de aniversário de uma mulher quase centenária cujos filhos festejam a data contrariados. Um deles, inclusive, nem vai. Manda a esposa ir para representá-lo. Durante a narrativa as falsidades entre todos são reveladas e, asperamente, a protagonista de quase um século descarrega sua visão crítica sobre a família que a rodeia. Ela sabe que o maior desejo de todos era estar longe de sua casa, pelo menos na rua, livres do núcleo familiar. 
              Tanto Clarice quanto John Wells moldam personagens femininas fortes e impactantes que protagonizam a quebra de teimosas máscaras de uma entidade há muito tempo em declínio: a família.
            O câncer corrosivo de Violet ganha papéis simétricos com a relação existente entre ela, marido e as filhas. A relação familiar ao ser verbalizada assume o caráter da corrosão que até então estava, aparentemente, muito bem implícita. É uma família nada empática. Acima de tudo estão os interesses particulares de cada membro. Uma irmã sistematicamente pensa no casamento por interesse com um adulto-adolescente cheio da grana. Outra busca alguém para não ficar solteirona. Já Bárbara, uma interpretação gigante de Julia Roberts, vaga sem rumo e, certamente, uma das menos preparadas para suportar os problemas clínicos da mãe. Com uma filha adolescente problemática (eis aqui um pleonasmo) e o divórcio, resta a Bárbara seguir em frente buscando um novo rumo. Mas como? A cena final do filme, para ilustrar a busca de novos rumos ou a desorientação, chega a simbolizar a condição da personagem de Julia Roberts.
            Assistir a Álbum de Família é ter a coragem de assumir que não estamos exclusivamente diante uma obra fictícia. O desmoronamento familiar desse álbum impera em diversos lares e, muitas vezes, por convenção preferimos esconder. Somos, compramos e vendemos imagens. O que querem de nós nem sempre podemos ofertar ou adquirir. Idealizar o parentesco é tempo perdido. Há sempre um câncer nessas relações se mostrando ora benigno, ora maligno.
            Álbum de Família não tem a pretensão de dar lições de moral como: "Ame seus pais, irmãos, perdoe e seja perdoado". Os potentes diálogos espalhados nas duas horas de filme não aspiram a uma lição tão sacra como essa hipoteticamente levantada. O que se tem na tela é o retrato desbotado de seres batizados na intolerância com o outro. É a fraternidade resumida numa insensível frase de uma das irmãs que diz: "Somos irmãs por acidente genético". Frase cheia de lama, indesejada.
            Nesse lamaçal familiar, fugir da fina camada de barro é exigência. Sair dessa sujeira é o esclarecimento de que se identificar, mesmo parcialmente, com o filme pode ser, a princípio, um choque. Segundos depois, porém, percebemos o quão somos docemente amargos, humanos. Notamos que no álbum de família temos, querendo ou não, um retrato roto e amarelado.
            Vitor Miranda

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A droga da falácia

José Mujica, presidente uruguaio
Não é de hoje que se fala em descriminar ou não a maconha. É melhor legalizar? Manter ilegal? As opiniões se dividem. É perceptível que a opinião pública, na sua maioria, defenda a criminalização. Nossos vizinhos lá do sul, os uruguaios, recentemente tiveram no país a legalização da maconha. E a respeito dessa legalização, o poeta Ferreira Gullar – um ex-bom poeta – escreveu uma coluna ontem (12) na Folha de S. Paulo. Impressiona como a sabedoria de Gullar não mais se faz presente no que ele produz.
O autor apresenta em seu texto que o Uruguai em breve passará a fazer a festa dos traficantes sul-americanos. Diz ele que a legalização uruguaia alimentará as vendas ilegais, ou seja, fortalecerá o comércio ilícito na vizinhança na América do Sul.
Muitíssimo improvável que a profecia de Gullar se concretize. Qualquer sujeito minimamente informado a respeito desse assunto sabe que a maconha não é uma droga que fortalece sistematicamente o narcotráfico e muito menos a que agrava rigorosamente os problemas sociais nos países. Drogas muito mais viciantes como a cocaína e o crack é que, de fato, mantêm e ampliam o poder e renda dos traficantes. A dependência dos usuários em relação a essas duas drogas, por exemplo, é realmente a grande preocupação. Ambas podem causar sérios problemas físicos e psíquicos ou mesmo matar o dependente químico.
Há quem diga que a maconha é uma droga mais leve, porém abre portas a outras mais pesadas. Ora, se isso é verdade, o que leva ao uso da maconha? O cigarro? Então que se exija do Estado o veto à venda do cigarro. E aproveitando carona no assunto, que se proíbam também bebidas alcoólicas.
Não faço aqui a defensoria da descriminalizarão da maconha. Estou, na verdade, discordando de argumentos tão falaciosos como os de Ferreira Gullar. A verdade não é minha, mas certos equívocos são inaceitáveis, ainda que façam parte de uma opinião. Por mim, dever-se-ia proibir cigarro, maconha e tantas outras drogas, caso realmente a preocupação governamental seja a dependência e a saúde das pessoas. Tais drogas são nocivas à saúde e o prazer dado é ilusório e efêmero.
Aceitar falácias como a de Gullar é desviar o foco do real problema das drogas e encobrir que cigarro e álcool também são drogas preocupantes.
Caso seja verídico o desejo do Estado em combater o consumo de drogas, ele precisa atacar mais efetivamente o comércio delas na fonte. Vigiar melhor as fronteiras e aumentar o rigor legal contra traficantes é o caminho mais lógico nessa guerra. Sem o produto não há o uso. Combater o usuário com opressão e fichamento é certamente mais ineficaz do que combater o produto.

Vitor Miranda

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Discurso de Formatura - 3° A - 2013

3° ano A - 2013 - Época Positivo
Durante os séculos XV e XVI, os europeus lançaram-se nos oceanos a fim de novos mundos. Para comandar as caravelas com seus tripulantes, em cada uma havia um comandante. Pois bem, assim também se faz nossa relação, caros formandos.
            Há seis anos fui encarregado de ser um dos comandantes de vocês. Entrei na caravela que me aguardava e os tripulantes, na época mirins, estavam afoitos, em algazarra e guardando para mim uma convivência que germinou e se fortaleceu durante nossa navegação por mares nunca dantes navegados.
Durante o trajeto ao nosso destino que se concretiza hoje, alguns tripulantes se foram, outros chegaram e mantiveram a mesma comunhão comigo. Houve conflitos tempestuosos? Sim, e sempre haverá. Somos racionais, mas também emotivos e instintivos. E principalmente “distintos”. Erramos bastante, corrigimos talvez pouco, porém vamos aprendendo a corrigir mais para sermos mais.
Não quero fazê-los chorar com a despedida, quero que entendam que vivemos gloriosamente cada momento que tivemos e fizemos dele uma experiência de aprendizado e amizade. Se pudesse, ficaria com vocês até o fim de meus dias, mas o processo da vida é que dita as regras e grita nesse momento: é hora da despedida, Vitor. No entanto, despedida não quer dizer jamais. Vamos nos ver por aí.
Não tenho a cara mais que eu tinha, nem vocês. O tempo é cruel, rei, e também generoso. Fez laços entre nós, teceu nas nossas vidas uma ligação que poder nenhum pode romper.
Se fosse poeta, eu daria a vocês o mais belo poema. Não sou poeta, não tenho o talento de Drummond ou Fernando Pessoa. Sou alguém que aprendeu a ser um pouco de cada um de vocês e tentou ensiná-los aquilo que a vida e os livros me ensinaram.
Acredito que a nossa navegação está cumprida, e sei que nesse momento posso pegar a embarcação e ir embora, deixá-los livres para outras viagens por outros oceanos. Certamente encontrarão novos comandantes e uma nova tripulação. Não são mais marinheiros de primeira viagem, são pessoas gabaritadas para navegar por águas escolhidas por vocês.
Nesse momento, retiro as cordas e âncoras que imobilizam meu barco e me despeço de vocês, 3° ano A. Tenho outras tripulações para eu fazer a mesma viagem. No entanto, nova tripulação não quer dizer que a anterior será apagada, pois aquilo que o coração escreve, a mente fracassa em esquecer.
Obrigado por tudo! Sucesso a todos!
Vitor Miranda

domingo, 16 de junho de 2013

Feira do Livro

Sábado (15) estive na Feira do Livro de Ribeirão Preto. Saí do local com extrema alegria e uma certeza: o livro, por aqui, está mais vivo e forte do que nunca.
            Em cada espaço onde havia livros, pessoas se aglomeravam para ver, tocar e comprá-los. Sim! Ver, tocar e comprar livros. E boa parte delas, crianças. Isso tornou minha visão ainda mais alegre.
            Vivemos uma fase em que se cogita o fim do livro tradicional, o livro de papel. Sinto informar aos “moderninhos” dos tablets e similares que isso não acontecerá pelo que se tem visto hoje em dia e pelos séculos após a invenção do livro-papel.
            Acreditar no fim do livro é acreditar que a humanidade deixará de usar a roda. A Feira de Ribeirão cumpre finalmente seu papel de celebração e incentivo à leitura, pois tem agora o livro como seu protagonista. Até o ano passado o livro era coadjuvante no evento, uma vez que se entupiam os dias com shows e, assim, atraía-se, em grande parte, um público mais interessado no fator sonoro do que no literário. Dessa vez a organização acordou e percebeu que a Feira é do LIVRO. As outras atividades paralelas ao evento é que merecem o cargo de coadjuvantes. Os shows, inteligentemente, foram diminuídos e colocados em um outro espaço, longe da praça onde se realiza a feira. Aliás, fui a um dos poucos shows, o do Gilberto Gil. Bom demais. É o velho Gil, mestre de obras como “Metáfora” e “Tempo Rei”.
            Mas voltemos ao personagem principal da feira. O livro, sem sombra de dúvida, continua mostrando o seu poder de encanto e conhecimento. Pessoas de todas as idades, e repito, boa parte crianças, provaram que ser otimista em relação à leitura hoje e futuramente é algo visivelmente óbvio. As novas tecnologias vêm para agregar, não para substituir esse suporte tão simples e perfeito.

            Vitor Miranda

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amargo lar


            O recente romance, do premiado escritor Menalton Braff, O Casarão da Rua do Rosário resgata uma importante forma de composição de conteúdo muito explorada na história da literatura: o espaço-moradia como elemento determinante da narrativa.
            Na história da literatura, vários gênios das letras criaram verdadeiras obras-primas ao dar “vida” a moradias que, diretamente ou indiretamente, funcionaram como partes fundamentais das narrativas. Exemplos não faltam. Emily Brontë em O Morro dos Ventos Uivantes tece uma história de amor e vingança em que a propriedade serve de casulo a conflitos e mesmo uma obsessão de vingança de seu protagonista, Heathcliff. Em A Queda da Casa de Usher, Edgard Allan Poe cria um conto em que a casa com seu ar soturno e medieval antecipa as principais ações e comportamentos humanos. No Brasil, Lúcio Cardoso, na modernidade, escreve seu principal romance justamente tendo uma casa, digamos, como protagonista: Crônica da Casa Assassinada. No romance o autor apresenta ao leitor uma casa quase viva, onde os segredos e conflitos entre os familiares se inflamam e incendeiam os passos de cada fato narrado. Cartas e diários vão fazendo sugestões das mais intensas possíveis, como um provável caso incestuoso entre mãe e filho. Um quarto exemplo que podemos citar é o conto Nada e a nossa condição, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras Estórias. No conto, o protagonista Antônio reside numa grande propriedade rural onde a casa da fazenda é o espaço central da narrativa. Com o passar do tempo, morte da esposa e a mudança das filhas casadas para outros centros, Antônio vai se fechando, entristecido, na casa até morrer no menor quarto da enorme propriedade. Por fim, o espaço todo pega fogo. Consuma-se, assim, a morte recíproca de posse e possuidor.
            Braff em seu romance narra a saga de uma família descendente de portugueses, os Gouveia de Guimarães, que ostenta um orgulho quase monárquico e a todo custo procura blindar a decadência pela qual passa. Trata-se de uma família de sete irmãos, cinco irmãs e dois irmãos, em que a matriarca solteirona Benvinda procura reinar o casarão ditando ordens e impondo comportamentos aos familiares. O pano de fundo temporal é a ditadura militar brasileira. Diante esse cenário dos Gouveia de Guimarães e a ditadura militar, o narrador vai orquestrando um conflito de ordem familiar e político-social.
            Dos sete irmãos, três assumem um papel central no romance. Benvinda (a matriarca), Isaura (irmã caçula, uma antítese de Benvinda, pois não se prende a conservadorismos e não aceita quaisquer ordens da irmã) e, por fim, Ataulfo – irmão com problemas mentais e exilado numa edícula do casarão.           
          Menalton, nessa obra, entra em um terreno perigoso de se sair, isto é, fazer um romance panfletário, dado que o pano de fundo é político. Com maestria já comprovada em outras obras, o escritor sai ileso desse problema, não faz um romance panfletário. O que se sobressai no livro é um estilo vibrante de composição, com doses poéticas, de quem claramente possui em seu DNA traços de Clarice Lispector e José Saramago. Deste vem uma pontuação de ruptura (Mas eles são todos iguais?, perguntou excitada...), daquela vêm metáforas insólitas ou um discurso elíptico (O inverno tinha descido na geada à noite e subia no bafo da menina, pasta na mão, no caminho da escola). Da junção de suas influências, Braff cria seu estilo discursivo, pessoal, e acrescenta arte às letras brasileiras. 
            Os nomes são um trabalho especial à parte. Benvinda recebe um nome irônico, afinal, não se trata de uma boa hospitaleira. Por ela, a irmã rebelde Isaura não moraria com os filhos no casarão. Isaura, depois de um bom tempo, retorna ao casarão por necessidade de moradia, uma vez que seu marido – Bernardo – sumira pelas mãos da ditadura militar. Já a rua do casarão, Rosário, é claramente uma referência ao catolicismo efervescente das irmãs Gouveia de Guimarães.
            O casarão para Benvinda é um lugar sagrado, não pode ser maculado por aquilo que defende como profano, subversivo ou vergonhoso. Diante isso, ouvir missa pelo rádio no casarão, rejeitar as ideias esquerdistas e ancorar Ataulfo nos fundos da propriedade tornam-se formas de preservação da moradia, ou seja, o passado com suas regras e empáfias não pode ser alterado. Porém essa preservação se mostra ineficaz quando, na construção de um prédio em frente ao casarão, as irmãs percebem que o progresso devora sem mastigar aquilo que, até então, parecia eterno, inviolável. Os tempos não são mais os mesmos, é hora de encarar as mudanças (Em casa as irmãs percebiam assustadas que o mundo girava, e não discutiam mais a inutilidade de mulher na escola...).
            Assim como no conto de Guimarães Rosa, a casa vai sendo apagada aos poucos pelo tempo e morte de quem a habitava.
            Benvinda é o sistema ditatorial decadente, que reinou e aos poucos foi perdendo a coroa e o trono para um desejo de mudança, contestação. Nesse caso, a contestação é o novo, a caçula Isaura (professora, símbolo do conhecimento e razão, mãe-nação que abraça os filhos).
            Em Ataulfo encontramos uma alegoria filosófica. É o bom selvagem de Rousseau.Ele é quem guarda, entre os irmãos, o sujeito que não foi corrompido socialmente (Tio Ataulfo era indiferente a muitas coisas para as quais dávamos a maior importância. Questões de etiqueta, diferenças de qualidade em geral não pareciam ocupar a sua mente.). Ataulfo preserva sua identidade de homem ligado à natureza e dela torna-se cúmplice: planta e admira ouvir pássaros. É a poesia do romance.
            O romance, no conjunto de seu contexto, deixa a ideia de que Isaura foi um Heathcliff, voltou para conquistar a casa que nunca deixou de ser sua. Benvinda padece como Antônio, do conto rosaneano, quando vê que seu amado casarão perdeu a vitalidade. No conto de Guimarães a solidão assassina o casarão da fazenda, em O Casarão da Rua do Rosário é o progresso com suas novas ideias que extermina a imponência da casa dos Gouveia de Guimarães.
            O desfecho da obra deixa claro uma velha máxima marxista de que Tudo que é sólido se desmancha no ar. Afinal, profetiza o narrador: Um dia, alguém terá a ideia de construir um condomínio fechado onde existiu um casarão, e ele será apenas uma lembrança, até se tornar discurso.
            Vitor Miranda

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Ouro de tolo

            Eça de Queiroz não está entre meus autores preferidos, mas certamente entre aqueles que considero um dos maiores escritores da língua portuguesa. Constatei isso mais uma vez. Li, recentemente, até então inédito para mim, o seu romance “A Relíquia”. Saí do livro dando boas risadas e aplaudindo o humor cáustico desse homem das letras portuguesas.
            A obra narra uma história cheia de hipocrisias e conservadorismo lusitano. Seu narrador é o protagonista Teodorico. Órfão de pai e mãe, ele é criado por uma tia que é rica e só tem o sobrinho como parente e, diretamente, único herdeiro da sua fortuna. O nome dela é Patrocínio das Neves, portuguesa católica acima de tudo.
            A fim de agradar a tia, provar seu catolicismo inexistente e, assim, ganhar a confiança de Titi (apelido de Patrocínio das Neves), Teodorico faz uma viagem de peregrinação a Jerusalém para de lá trazer objetos santos e, dessa forma, trazer dias melhores à saúde debilitada de sua parenta. Mas Titi não aceitará nenhum desvio de conduta (principalmente envolvimento “amoroso”) de seu sobrinho para que ele possa ser seu herdeiro. Ela, uma forte caricatura do mais alto moralismo cristão, abomina tal ação, pois considera isso pecaminoso e vergonhoso. Ocorre, no entanto, que Teodorico é mulherengo. Com esse comportamento ele acaba não recebendo a fortuna de Titi. A tia do rapaz deixa a maior parte de seus bens à igreja.
            Enredo simples: “herança, herdeiro único, órfão... E é exatamente com essa trama básica em que encontramos o valor das letras de Eça de Queiroz. Para abordar tamanha simplicidade e dar a ela um alto valor literário, o autor compõe seus capítulos com muita ironia e críticas, ora diretas ora indiretas à sua sociedade portuguesa.
            Claramente temos um simbolismo antagônico entre os parentes: Patrocínio das Neves é o Portugal religioso preso ao passado. Já Teodorico é o Portugal jovem (e minoria) que não vê os valores religiosos como fundamentais para a vida.
No plano individual, Teodorico é o jovem cheio de impulsos voltados para os prazeres típicos dessa idade. Envolve-se facilmente com mulheres e em curtos intervalos comporta-se como se estivesse encontrado o amor da vida. É visível, aqui, a notória inexperiência amorosa pela qual a maioria da juventude passa.
            No início do livro, uma passagem de destaque e sutil está logo na chegada do então menino Teodorico à casa da tia. O sobrinho, surpreso com tanto ouro ornamentando Jesus num oratório da casa, pergunta se aquele ser divino também era cheio de ouro no céu. A inocência da criança em querer entender a ilustração do oratório ganha destaque porque trata-se de uma ingenuidade natural, típica dessa fase da vida. Em contraponto a isso está a ingenuidade da tia, que se manifesta, principalmente, em relação aos objetos da Terra Santa, os quais ela considera com poderes divinos. Essa ingenuidade advém de um alto teor religioso. Patrocínio é um Portugal ingênuo, enganado por suas ideologias medievais num mundo moderno onde os grilhões devem ser arrebentados para encontrar o desenvolvimento da nação.
            Merece destaque, ainda, uma passagem do romance em que Teodorico sonha com o diabo. Entre eles ocorre um diálogo. O diabo aponta alguns exemplos das mazelas humanas e faz uma revisão histórica delas desde tempos remotos até a chegada do cristianismo. Teodorico, pensando que o diabo está entristecido por achar que a chegada de Cristo findaria as mazelas do mundo, tenta consolá-lo dizendo que coisas ruins ou piores ocorrerão no futuro. Dessa abordagem, vem o caráter profético de Eça de Queiroz. Como se ele antecipasse o holocausto nazista, Teodorico diz que futuramente haverá fogueiras para queimar judeus. É o Realismo/Naturalismo de Eça antecipando um dos fatos mais marcantes do século XX ao sugerir uma forma desumana extrema de intolerância.
            A relíquia a que o título do texto faz referência é uma coroa de espinhos. E nem precisa dizer que coroa é essa, certo? Essa falsa coroa de Cristo é levada por Teodorico até Portugal, à tia, que por alguns momentos pensa que está com um dos objetos da dor do Messias. Para outras pessoas do círculo religioso de Titi, o jovem traz frascos com água do Jordão, pregos “da cruz” do martírio de Cristo entre outros artefatos “sagrados”.
            Já no final da obra, mesmo não recebendo a herança maior de Patrocínio das Neves, Teodorico percebe que o comércio religioso é extremamente lucrativo. Mais uma vez profético o Eça? Certamente. Os vendilhões do templo não foram expulsos, e se foram, não levaram Cristo a sério e voltaram. Eis, novamente, a ironia saborosa de Eça de Queiroz fazendo uma importação de uma conhecida passagem bíblica.
            “A Relíquia” é um romance que merece uma leitura de quem admira um bom texto em que a linguagem bem manipulada e teor crítico dão as cartas. Sem dúvida, estamos diante de uma grande obra do nome maior do Realismo/Naturalismo luso.
            Vitor Miranda

domingo, 30 de dezembro de 2012

A odisseia de Pi


O cinema de 2012 nos submeteu a duros castigos. Tivemos entre esses castigos mercenários e vingadores, por exemplo. Eis, então, que dezembro para redimir os meses anteriores entrega de bandeja um agradável presente nas telas: “As Aventuras de PI”, dirigido por Ang Lee.
            Assisti ao filme depois de ver algumas resenhas bem favoráveis à produção e, para a minha constatação, as resenhas não blefaram.
            O filme é uma adaptação do livro “A Vida de Pi”, do escritor Yann Martel. É bom ressaltar a polêmica autoral que envolve a obra. O livro foi atacado por muitos como plágio do romance “Max e os felinos”, do escritor brasileiro Moacyr Scliar. No entanto, isso é outra história. Fiquemos com o filme como elemento de análise.
            Resumidamente, a história é a seguinte. Uma família de indianos depois de alguns fatos – não vêm ao caso – decide mudar-se para o Canadá e leva junto com ela os animais que tinham em um zoológico. A mudança é feita em um navio cargueiro que, lá pelas tantas, naufraga e no bote salva-vidas fica apenas (da família) Pi, o protagonista, a salvo. A família toda dele (mãe, pai e irmão) morre. Para surpresa do garoto Pi, alguns animais também estão no bote, e chegam mais dois pelas águas. Destaca-se aqui o tigre-de-bengala, o coadjuvante que, em certos momentos, torna-se o protagonista. Aqui novamente tem-se a eterna abordagem da relação entre homem e animais. As diferenças são latentes entre os dois reinos, mas humano e selvagem vão se conhecendo e criando intimidades necessárias para sobreviver.
            No início, impossível não sofrer uma catarse com as imagens poéticas de uma Índia exótica. São minutos de uma plástica exuberante, digna de uma descrição romântica.
            O alto teor religioso da obra, uma tentativa de conciliação entre politeísmo hindu e as religiões monoteístas, é enfatizado no protagonista, que vê nessa carnavalização uma união de crenças distintas para a busca do superior, do divino. Alegoria utópica para um mundo onde as guerras santas são uma constante.
            Das intertextualidades proporcionadas pelas leituras do filme, também está ali um Jó indiano. Crê piamente em deuses, perde tudo, família, bens, sofre as mais duras provas físicas e, no entanto, a fé se mantém acesa quando poderia facilmente ser apagada.
            Do ponto de vista mitológico e também simbólico, mais uma vez caímos em Homero. Ang Lee faz de Pi um moderno Odisseu.
            Assim como o herói da “Odisseia”, Pi passa por inúmeras provas no oceano para voltar para um porto seguro. E não se trata mais da casa nativa, como na epopeia de Odisseu, mas de uma nova morada. Enfrenta “monstros gigantes” (baleia), peixes voadores, tempestades e, poeticamente, uma ilha carnívora. Aqui se mostra a evidência mais próxima do herói grego Odisseu. Pi, após uma boa análise sobre a ilha e seus quase mistérios, deduz que ficar ali era automaticamente tornar-se o novo cardápio do local. Alimenta-se dela, porém seria alimento do lugar se ali permanecesse. O jovem faz uso da sua inteligência e, dessa forma, sua vida continua.
            O tigre-de-bengala é mais uma alegoria interessante. Dentro da relação intertextual com a “Odisseia”, de Homero, tem-se aqui o símbolo da desconfiança, do inesperado. Isso porque na obra grega o protagonista convive durante sua epopeia com uma tripulação de amigos que ora ou outra age de forma inesperada contra Odisseu. Tudo isso por conta da desconfiança da natureza do outro. Só para destacar uma dessas desconfianças, é só relembrar os presentes que Odisseu ganha e, por questões de imposição do doador, ele não pode revelar à sua tripulação. Os seus amigos de viagem, então, passam a desconfiar de que o astuto Odisseu ganhou valiosos tesouros e não quer reparti-los. Nos dois casos, filme e “Odisseia”, a conquista da confiança é extremamente necessária para a sobrevivência.
            Ainda bem que há diretores como Ang Lee que olham o cinema não apenas como um produto comercial, mas como ferramenta de arte também. A bela história de Pi nas mãos de Lee contribuiu para salvar, em parte, o cinema de 2012.
            Vitor Miranda