domingo, 30 de dezembro de 2007

Caminhada

Quando jovens, pequenos imaturos,
atravessamos alguns terrenos cruéis.
Nele, espinhos e pedras,
há dores pela derrota sangrenta no coração.
Um sangue que não era bem sangue,
afinal, pisávamos sem saber.

Ah! se soubéssemos cavar desde a juventude,
quantos terrenos desnecessários não pisaríamos.
Vitor Miranda

O vento

Sempre que estou dentro de um veículo e é possível sentar-me perto da janelinha, abro-a para sentir o toque do vento na face. Aprecio esse prazer.
Não só o vento da estrada é um prazer, posso dizer o mesmo de alguns outros que cotidianamente me encontram.
Ontem, por exemplo, lia alguns saborosos sonetos de Pablo Neruda. Na companhia da leitura, o bom amigo vento, vindo do ventilador, acompanhava-me, dava-me seu néctar para refrescar meu corpo espantando o calor tropical desse nosso país. O vento que vem do ventre do ventilador pode parecer meio que artificial, mas não deixa de causar o mesmo prazer vindo do natural, afinal, são compostos dos mesmos elementos.
Damos graças por aqui que, dificilmente, ele aparece na sua forma mais potente, o furacão ou tornado. É triste vê-lo nessa abominável forma. Engole casas, árvores, carros, placas e cercas numa fome impressionante. Outras vezes, menos forte, mas também abominável, acompanha uma chuva e causa, assim como seu irmão tornado, uma triste destruição.
O vento é como gente, penso. Tem o prazeroso e amado, como tem os indesejados como os acima já registrados.
É quase que poético ver uma leve brisa levantar folhas e papéis e levá-los ao espaço oco do ar. Os papéis e folhas sobem soltos, vão flutuando como seres que buscam o destino sem saber onde ele está. E mais suave é ter essa doce brisa sentida na pele. Ficamos um pouco leves como os papéis e folhas quando a brisa nos toca.
No arquivo de minha memória, lembro-me de certa vez que li “O saci” de Monteiro Lobato. Às vezes, ficava no terreno de casa esperando vir um vento e formar um redemoinho. Queria comprovar se realmente havia saci no seu centro, como li no livro de Lobato. Para fim de minhas fantasias pueris, não encontrei, mas, de vez em quando, tento recuperar tais fantasias.
Outra beleza que não posso deixar de escrever provocada pelo vento é sobre quando ele aparece na praia. É lá que se pode notar que as brisas, sem nenhum pudor, declaram que ali é sua morada preferida.
Quão notável e insuperável é tê-las no mar!
A brisa no mar bate nas águas como se fosse um ritual. Toda a sutileza de sua ação torna-se um ato divino e ímpar. A brisa batendo no mar é um bumerangue que sai da praia. Ela sai da orla, vai ao mar e volta úmida para tocar os que pela praia estão.
Minha crônica chega ao fim, enquanto sobre meu corpo quente e castigado pelo calor, o vento na sala com seu dom de sempre vai curando-o.

Vitor Miranda

sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Conto: Madeira

De um lado para o outro, Baltazar movimenta a lixa sobre a madeira. O pó escorre no ar e deixa seu odor quase maduro. Penetra-lhe o cheiro uniforme no nariz. Cheiro costumeiro, odor de vinte anos de profissão, eflúvio inodoro.
O trabalho meticuloso sobre o pedaço de árvore morta, servirá para um corpo frio, sem vida. Na cidade, todos dizem: “Os caixões do Baltazar são os melhores.” Vaidade desnecessária. Corpo inerte precisa só de um cobertor de terra, a madeira é um mero transporte até o cemitério.
Pedaços de lixa e madeira avolumam-se num canto do salão, onde o calor do dia dobra sua temperatura sob as telhas finas. Baltazar despejando o suor sobre a pele empoeirada, bate um prego, cria o barulho sobre a madeira que começa a dar forma ao fúnebre ganha pão. Deitado, em dose exata de sono, um corpo cairá sobre esses pregos, madeira e restos de pó vegetal.
Senta-se num banco. Descansa Baltazar. O cigarro barato na mão é aceso e leva o tabaco a ele. Quatro da tarde é um bom horário para se descansar, aguardar com expectativas o momento de ir embora do trabalho. É o que faz Baltazar, pobre, sério e barateiro construtor de caixões.
Enquanto os minutos lhe presenteiam com o descanso merecido, e num cantinho do salão um rádio toca uma música antiga, palavras e reflexões caem em seu pensamento. Coisas nunca pensadas no trabalho.
O caixão que nasce, quem será seu dono? Se a pessoa que o ocupar for desfigurada, os veladores não verão as formas exatas e desenhadas do interior. A morte deverá escolher um bom fim ao sujeito que descansará nele. Um ataque cardíaco seria uma excelente maneira, não traria nenhum motivo para que o lacrasse. É preciso que as pessoas não se privem de suas medidas e detalhes exatos. É um caixão sem defeitos.
Quanto carinho nesse novo caixão. Baltazar pegou a melhor parte da madeira, usou a delicadeza do escultor para detalhá-lo e passou verniz verdadeiro ao invés de passar produtos enganadores. Para ele, suas mãos produziram uma grande arte.
Caixão, quem merecerá seu leito, rico ou pobre? Mais acabamentos lhe dou? Se vender aos pobres, terá um preço baixo, se vender aos ricos, preço alto. Mas em minha incapacidade de suposições, não consigo calcular seu preço. Há homens ricos que não valem nada, desprezíveis criaturas que não merecem nem ser enterradas, a eles não o vendo. Terra a esse tipo de gente é pecado sem perdão. Não se pode negar que há pobres assim também, logo, a eles não o vendo. Em silêncio, Baltazar ouve esses seus pensamentos, idéias que falam alto sem necessidade de boca.
Levanta-se e caminha ao caixão. Sobre o cavalete, alisa a madeira, dessa vez sem a lixa, apenas com as mãos grossas de sujeira. Ao deslizar a mão, sente na madeira certas sensibilidades carnais. A razão é ilógica para a novidade que se sente. Baltazar sente na superfície do caixão a sensação de acariciar a pele feminina. É lisa e quente, perfume florestal. A inércia da madeira o conforta, absorve no contato certas emoções abstratas e cruas. Nasce nele um pequeno universo recheado de prazeres.
O preço da obra de Baltazar já não mais existe, se é que existia para ele. Paralisaram-se todas as regras anteriores do trabalho diário que lhe paga as despesas. Os sentimentos de uma criação nunca são revelados por completo. Quando se depara com eles, acontece o que aconteceu com Baltazar, a criação torna-se o tudo.
Magro ou gordo, dentro de você esses porcos não entrarão. Ninguém o entende, não percebem o que você é. Sim, um caixão aos olhos insensíveis. Pupilas cegas que pensam que a imagem é sua forma real. Seu conforto será reconhecido, não ficará embaixo da terra sendo mastigado por vermes sem ninguém saber seu mais sublime segredo. Você transborda um prazer suave, quase brisa, quase água de lago – diz Baltazar sozinho ao olhar fixamente o vácuo do caixão.
Com cuidado, Baltazar, enquanto murmura certas palavras, dá os últimos retoques, acabamentos buscados por todos os criadores para atingir uma perfeição sempre insatisfeita.
À medida que finaliza o caixão, cresce a admiração por seu trabalho. Baltazar sem saber resistir, acaricia cada espaço da madeira, respira o ar da serragem como se fosse um raro perfume. O que se nota nele, não é uma paixão, mas algo que foge de qualquer explicação. O mundo é ele e o caixão.
As noções das horas se foram. Dia ou noite, tanto faz, o sentimento, quando forte, cria um mundo sem ordem, faz de pequenos minutos uma ampulheta eterna, escoando cada grão de areia em velocidade mínima.
Ah, caixão tão sedutor, Baltazar está para você, só para você.
Psicólogo ou algum religioso teria que opinião ao ver Baltazar nessa relação com o caixão? Impossível qualquer diagnóstico.
Grande espanto tomaria conta de quem visse Baltazar agora. Ele não se deu conta que o ontem virou hoje. Continua sujo, com a mesma roupa e o maço inacabado de cigarro comprado um dia antes. Fome não tem, sede muito menos. É homem duro em sentimento novo.
Com os olhos abertos, se vira. Está deitado, apertado entre madeiras, cheio de serragem recém-nascida. Ele se encontra dentro do caixão tão admirável. Dormiu durante toda a noite nele. Levanta o corpo, senta-se e apóia-se com as mãos e se vê no caixão sobre dois cavaletes.
Dos olhos de Baltazar, início de lágrimas. A cada lágrima escorrida, uma sensação estimulante ao riso. Ri, ri muito, sem parar, sem pausar o encontro do choro com as risadas altas. Ele sabe, somente ele sabe que, esse caixão tão bem construído e estimado, não pode ser de mais ninguém, a não ser dele. O preço, não há; Números não existem para que se calcule qualquer suposição de valor financeiro.
Quando esse caixão for para a terra, lá estará Baltazar juntamente com ele.
Vitor Miranda

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Dilúvio urbano

Vou muito a Ribeirão Preto. Dias atrás, lá, fui até ao ponto de ônibus para retornar para minha cidade, Serrana, e começou a chover. A espera durou quase vinte e cinco minutos, e, nela, a água que desabava do céu aumentava em boa proporção.
Um dos grandes problemas das cidades, principalmente as grandes, hoje em dia são as enchentes. À minha frente um córrego, um belo depósito para a água vinda da chuva, enchia e começava a ameaçar sua fuga para a avenida e mediações.
Ora, não sou nenhum especialista em construção, ainda mais em galerias, mas sei refletir: as cidades cresceram e crescem tanto que, onde sempre houve terra, agora há cimento e ferros.
Ribeirão Preto é um desses exemplos. A água que cai sobre a cidade não encontra terra suficiente para ser absorvida, pelo contrário, só encontra cimento alojado por baixo de árvores, ruas, casas e outros lugares. É evidente que o único lugar que resta é a superfície.
Quando houve o dilúvio, que se encontra na bíblia cristã, não havia a urbanidade de hoje, pode pensar um leitor mais atento e apontar tal acontecimento como um grande exemplo de enchente. É lógico que aquilo parece mais ter sido um castigo das forças divinas. (há quem creia nessa hipótese, a minha é outra mas não vem ao caso agora)
De qualquer forma, apontei o “acontecimento” bíblico para mostrar que há, aí, uma semelhança, que é o castigo. A chuva que inundava o córrego de Ribeirão Preto não era um castigo divino. Era e é castigo provocado por nós mesmos. Veio por meio dos pecados cometidos contra a falta de verde nas cidades, pelas queimadas e a grande emissão de gases poluentes doados todos os dias à atmosfera e meio ambiente.
Mas antes de fechar essa crônica, não posso deixar de relatar um pequeno fugitivo que vi correndo muito das águas provocadas por nós. Era um rato. (deve ter deixado a família pra trás, pois estava sozinho)
Não sei, mas tenho uma leve impressão que o roedor pensou que era o segundo dilúvio bíblico e devia encontrar a Arca de Noé rapidamente para salvar a espécie.

Vitor Miranda