sábado, 27 de outubro de 2007

Os finados

Aproxima-se mais um dia de finados, dia em que celebramos nossos mortos.
Aqueles que vão ao cemitério buscam, de certa forma, diminuir a saudade, estar próximos aos entes queridos, mesmo que entre eles exista uma coberta de cimenta ou apenas de terra.
Eu, particularmente, não tenho tal hábito. Das poucas vezes que visitei os túmulos de meus antepassados e amigos, saí com uma sensação de incapacidade e de impotência diante deles. Incapacidade e impotência de trazer o pretérito perfeito para o presente.
A morte é um mistério triste mesmo! Talvez seja o assunto mais fascinante para a humanidade, e também uma das coisas mais mal inventadas, sabe-se lá por quem.
Esta semana li uma crônica de Machado de Assis em que ele defende uma modificação para a morte. Na sua opinião, e concordei com ela, a morte deveria ser datada. A pessoa nasceria e saberia exatamente quando iria falecer. Com isso, os parentes estariam preparados, haveria um jantar de despedida, o pré-defunto, se alegre, contaria anedotas alegres, não haveria flores fúnebres, mas sim flores matrimoniais ao ser que partia. Assim, embora pudesse haver ainda a tristeza com a partida, seria uma tristeza menor.
Mas já que a vida tem suas próprias leis estabelecidas sobre nós, e uma delas é a morte, o que resta, para alguns, é o próximo dia 2 de novembro, dia da queima de velas, do cheiro triste de lágrimas misturado com parafina, de flores murchas que secam em lápides, de dia nublado, com golpes fracos de chuva sobre os vivos que rodeiam as sepulturas, dia longo de lembranças infinitas.
Que nossos mortos descassem em paz!

Vitor Miranda

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Professor

Hoje é 15 de outubro, dia do professor. Alguns professores, amigos meus, me dizem: “comemorar o quê?”
A educação brasileira está uma tristeza, é fato. Assim não sobra muito aos professores o que comemorar. Se for falar em reconhecimento então, aí devo parar imediatamente essa crônica. Mas sigo adiante.
Algo que sempre agradeci foi pelos ótimos professores que tive – e foram vários, a maioria.
Lembro-me que antes de aprender a ler e a escrever, olhava as palavras nos muros, jornais e revistas e imaginava qual seria a mágica para compreendê-las e escrevê-las. A dona Vani, minha primeira professora, ensinou-me a mágica.
Quando ela me ensinou a escrever meu nome, foi uma felicidade inesquecível, momento ímpar que ainda vive em mim. Ela entregou a todos os alunos um pedaço de cartolina, a minha era amarela, com os respectivos nomes. Pediu para que copiássemos as palavras do papel em nossos cadernos. Copiei na sala, repeti em casa e, no dia seguinte, a alegria:

- Vitor, responda-me – disse a dona Vani – “V” com “I”?
- “VI.”
- “T” com “O”?
- “TO.”
- “TO” com “R”?
- “TOR.”
- “VI” com “TOR”?
- VITOR.
- Muito bem, você acaba de aprender a ler e a escrever seu nome.
De todos os conhecimentos que obtive por meio de meus inúmeros professores, esse foi o mais importante e a aula mais inesquecível que tive.
Dona Vani, obrigado por tamanho tesouro.
A todos professores, parabéns pelo dia e, principalmente, pela profissão que escolheram.
Vitor Miranda

domingo, 14 de outubro de 2007

"A violência é tão fascinante"

Atualmente, ao falar em filme nacional, o primeiro que vem à cabeça é o discutidíssimo “Tropa de elite” do cineasta José Padilha. Não é pra menos, ele aborda algo que é adorado ser visto ou presenciado pelas pessoas: a violência.
A violência não é um tema atual, é antigo. Pura hipocrisia querer defender que a atual é a maior de todos os tempos, não é!
Se fizermos um breve retrospecto, veremos o quão ela se faz presente e imensa desde tempos remotos.
A bíblia, por exemplo, traz passagens em que a violência é um dos carros chefes. O assassinato de Abel pelo irmão Caim; os assassinatos de crianças sobre ordens de Herodes; a crucificação de Cristo e ladrões. É o texto mais lido do mudo com grandes exemplos da violência humana .
Saindo da bíblia, mas não muito, a história nos mostra as maiores batalhas e ações sangrentas pelas quais o homem passou. As causas do banho de sangue pelas quais a humanidade passou foram as mais variadas: causa santa (Cruzadas e Santa Inquisição), colonização, invasões bárbaras, revoluções e protestos políticos são algumas. A cada ambição, lá estavam os homens prontos a atacar, matar e roubar. Muitas vezes, havia um álibi, uma causa para ataques e punições, causas defendidas em interesses próprios, divinos e políticos.
Nas causas santas, a necessidade das batalhas surgia, segundo os combatentes, da vontade divina, quando não era isso, a causa era mesmo darwinista, convenhamos.
O que se pode notar nos exemplos citados é que a única diferença entre eles são as causas, pois as conseqüências são idênticas. Sempre que houver a ambição desnecessária haverá um conflito, independente daquilo que estiver em questão. Cito “ambição desnecessária” porque há a “ambição necessária” ao homem. A necessária é aquela que não prejudica a ninguém e, se possível, possa até ajudar outras pessoas. É uma ambição que forma o caráter, a solidariedade e o papel social de uma pessoa.
Um estudante ao formar-se em medicina, direito, licenciatura e outras áreas sempre estará ajudando a sociedade com seu trabalho. O cidadão que planta uma árvore e torce para que cresça, a luta pela vida mesmo quando ela parece estar no fim e tantos outros mais. Vê-se assim que a ambição se faz necessária e benigna nessas ocasiões.
Há uma velha discussão: a vida imita a arte ou a arte imita a vida? Na minha opinião, a arte é conseqüência da vida e de nossos desejos, ou seja, não imita e nem é imitada. Se alguma área da arte aborda a violência é porque ela seduz o homem numa provocação incontrolável. Tal provocação atinge tanto a classe mais baixa quanto a mais alta economicamente ou intelectualmente. Mas por que fiz essa colocação, além de o próprio cinema ser uma arte? É simples. Quem mora na favela e ouve um rap sobre a violência se sente bem pois vê nele uma maneira de externar o que sente. Há quem vá a um concerto, por exemplo, para ouvir “Abertura 1812” de Tchaikovsky. Entre o rap e “Abertura 1812” qual a semelhança? Ambos tematizam a violência. O rap é o dia-a-dia violento que a desigualdade social provocou na sociedade, a “Abertura 1812” é sobre a invasão napoleônica na Rússia. O que se pode discutir são os aspectos artísticos de cada uma. Independente de qualquer diferença social, a violência seduz.
Um bom exemplo de mostrar como a violência está enraizada em nós é a infância. Quantos de nós não corríamos para ver uma briga na escola ou na esquina de nossas casas? As histórias infantis que tanto nos foram contadas por pais e professores estão recheadas até a borda de violência. Em “Branca de Neve e os sete anões” a bruxa manda arrancar o coração da princesa; em “Chapeuzinho Vermelho” o lobo mau (aliás, nunca vi lobo bom) é morto a tiros por um caçador; em “Peter Pan” o Capitão Gancho tem a perna devorada.
E as cantigas? Quem nunca cantou “Atirei o pau no gato, mas o gato não morreu?” Nota-se que há uma adversativa na canção: “mas.” Por que, era para o gato morrer?
Crescemos e nos formamos absorvendo a violência dos mais variados modos. Qualquer um está sujeito a expô-la em algum momento da vida. Somos animais racionais, mas também emotivos.
Antes de terminar o texto, faço uma breve passagem pela literatura para dar alguns exemplos de como nela também se faz presente a “violência.”
Alguns dos melhores romances e poemas que já li a aborda. Em “Eurico, o presbítero”, do português Alexandre Herculano, as batalhas santas dão ação ao romance. No romance Naturalista (o próprio nome já diz que é natural) “O cortiço”, de Aluisio de Azevedo, há brigas e assassinato. Carlos Drummond de Andrade em um de seus mais belos poemas, “Morte do leiteiro”, faz um importante relato sobre o drama violento do cotidiano. Por fim, cito “Ilíada” e “Odisséia”, de Homero, dois textos milenares em que o tema central é a luta entre gregos e troianos e a batalha para voltar a Ítaca, terra do personagem Ulisses.
Pergunto a você, leitor inteligente, tais obras devem ser rebaixadas por relatar tanto a violência?
O filme de José Padilha não traz nada de novo, muito menos procura ser partidário e expor que o BOPE é o lado certo e vencedor da questão. Aquele que for inteligente o suficiente para ver o quão a violência está banalizada, perceberá que há mais semelhanças entre eles (BOPE e traficantes) que diferenças. A maior delas é a própria violência. Tanto um como o outro utiliza-se dela para atingir seus objetivos sem terem o menor escrúpulo.
Quem realmente entender o filme, verá que não há vencedores, apenas perdedores numa luta que parece ser infinda.

Vitor Miranda


sábado, 13 de outubro de 2007

Paulo Autran

Ontem, 12 de outubro de 2007, morreu aquele que, indiscutivelmente, foi um dos maiores atores do Brasil: Paulo Autran.
A primeira vez que vi uma peça dele foi há cinco anos no teatro Pedro II em Ribeirão Preto. A peça chama-se “Variações enigmáticas.”
A poucos metros de mim lá estava o Paulo, a voz inconfundível, os gestos ímpares e o perfeito domínio de palco. Não havia beleza material a ser vista no teatro, por mais belo que ele era e é. O enredo da peça deixou de ter importância, afinal, no centro havia Paulo Autran. Foi uma noite memorável.
Quatro anos mais tarde, retornei ao teatro para, novamente, assistir a ele. A peça agora era “Adivinhe quem veio para rezar.” Parecia que era a primeira vez que o via, tamanha foi a hipnose em que fiquei. Novamente, a beleza do teatro Pedro II e o enredo da peça foram ofuscados pela presença do ator principal do espetáculo. Um ator carismático capaz de pôr voz nos gestos e significados nas mais distintas cenas.
Uma das primeiras imagens que tenho arquivadas na memória sobre o Paulo Autran é uma atuação ao lado de Tonya Carrero numa novela da tv Globo, caso não falha-me a memória, a novela era “Sassaricando.” Na época, eu era menino. Aquele velhinho com uma voz de veludo, a cabeça com ralos fios de cabelo como dentes-de-leão desprendendo-se ao vento, as piadas de um humor simples e objetivo já começava a cativar o menino que ali assistia a ele. O menino cresceu e foi conhecê-lo ao vivo, naquele que era o lugar de sua preferência em atuar: os palcos de teatro.
Além do grande ator que foi, Paulo era um exímio declamador de poesias. Que doce, agradável e divino ouvir Drummond, Bandeira, Quintana e Casemiro de Abreu de sua boca. Na sua voz, a poesia ganha uma vitalidade tão grande quanto na pena dos poetas que a criou.
E, aproveitando o assunto “poesia”, foi justamente com ela que Paulo fez sua última aparição em público e, mais uma vez, emocionou a platéia ao declamar o belíssimo poema “Meus oito anos” de Casimiro de Abreu.
Penso que ele escolheu a dedo o poema a ser declamado, pois é a saudade que nos faz reviver aquilo que mais amamos e nos tornou, em algum espaço do passado, felizes e fortes. Paulo já desconfiava que em breve deixaria a saudade entre seus admiradores.
Senhor Autran, muito obrigado por sua arte e seu amor espalhado entre nós. Já está em nós uma saudade de um dia sem você, saudade que se multiplicará dia após dia e, nela, declamemos numa paráfrase: “Que saudade que nós temos/ Do Paulo Autran de nossas vidas/ Que os anos não trazem mais.”
Vitor Miranda

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Bem me quer, mal me quer

Dias atrás, ao dar uma aula de leitura numa quinta série, levei aos alunos um poema de Carlos Drummond de Andrade para ser lido e discutido (afinal, um bom texto requer uma discussão, convenhamos).
O poema era o famoso “Quadrilha”, no qual várias pessoas vivem um desencontro amoroso. A velha história: quem eu quero não me quer, quem me quer eu não quero.
Sempre pensei que lecionar literatura, ainda mais Drummond, a um público juvenil a receptividade seria maior e melhor. Enganei-me. Os dias em sala de aula com alunos mais novos que os juvenis têm sido melhores e mais gratificantes. Principalmente no aspecto interesse e compreensão.
Há um grande fascínio quando eles, os mais novos, se deparam com um poema. O texto curto e direto, como a “Quadrilha”drummoniana, causa um certo impacto lúdico neles. Alguns se vêem no tema e no corpo do poema.
Após ler o poema, uma aluna veio a mim e disse: “Professor, uma vez eu gostava de um menino que gostava de minha prima, mas ela não gostava dele, gostava de outro menino.”
Grande foi minha alegria! Os poucos versos desse poema grandioso, naquela menina, exatamente 11 anos, foram transpostos do papel e levados para a sua vida. Penso que a literatura é pouco disso.
Quando a literatura se manifesta na vida de alguém é que ela passa, realmente, a ter vida. O texto literário
é um ser adormecido louco para ser acordado e incorporado e, uma vez acordado, jamais volta a dormir.
Acordar um texto é fazer as letras dançarem ordenadamente formando palavras, e delas, textos e mais textos: poemas, romances, contos...
Mas retornando ao bardo Drummond e a sua “Quadrilha”, ainda resta mais um relato sobre a minha aula na quinta série. Uma outra aluna, que adora ficar dispersa na aula, escrevia, cantarolando baixinho, no fundo da sala em uma folha de caderno, alguma coisa. Dirigi-me, lentamente, até ela e pedi para ver o que escrevia. Na verdade queria chamar sua atenção para que ficasse atenta à aula. Tive uma surpresa. Ela havia reescrito o poema substituindo “João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili e J. Pinto Fernandes” por nomes de alunos da sala.

Vitor Miranda