domingo, 28 de setembro de 2008

Poetas ausentes


Os grandes poetas sempre escreveram sobre o seu tempo vivido. É fácil constatar nas poesias de poetas como Carlos Drummond de Andrade as questões sociais de sua época. Os versos surgiam como grito para uma sociedade que caminhava entre o medo e a esperança de dias melhores em tempos de guerra e autoritarismo. Exemplo disso é o clássico drummoniano A Rosa do Povo, de 1945. Hoje, no entanto, dificilmente se encontra um poeta brasileiro engajado com questões como o terrorismo ou mesmo política local. O papel social do poeta atual é deixado por ele próprio.
No Brasil, se lê pouco. Poesia menos ainda. É raro um leitor ficar em uma livraria folheando um livro de poesia, ou mais raro ainda haver livrarias disponibilizando um bom número de livros desse gênero. Parece que houve um divórcio entre o leitor e o poeta. Este não mais produz seu grito poético de protesto e de formação de opinião. Os novos poetas parecem se negar a falar do mundo das pessoas.
Por outro lado, quando um poeta de hoje vai versar para as pessoas, cai no reducionismo sentimentalista ou mesmo intimista. O papel social aqui é descartado claramente. Não é necessário, para esses poetas, falar do salário de fome do brasileiro ou da violência. Tal reducionismo é semelhante ao poeta parnasiano, que fugia para as metafóricas torres de marfim. Essa atitude é covarde e egoísta. A palavra como meio de crítica social é forte instrumento. Não há melhor executor do que o poeta. É ele que sabe usar a palavra exata na hora exata.
Falar de poetas como Drummond é bom, mas deve-se citar os atuais também, quando eles merecerem. É lógico que a poesia é o grande valor de um poeta, mas sem dúvida o simples fato de só mencionar o nome de um grande poeta é valioso. A própria imagem dele para a sociedade é símbolo de influência à arte e comprometimento com direitos e deveres. Com a ausência da imagem do poeta e de sua poesia, o social fica enfraquecido.
A importância da arte da palavra para um povo é inquestionável. Por ela se diz o que pensamos e sentimos. E é justamente na poesia que ela assume seu papel de maior força. Todos nós precisamos de grandes poetas para nos ensinar a usar a palavra como arma de defesa social e pessoal. A ausência do poeta cria uma nação órfã e saudosista de poetas clássicos que já fizeram um bom trabalho para nós. É necessário que o poeta reassuma seu papel ativo na sociedade. Assim a poesia volta a viver e nós também.

Vitor Miranda

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Flores e cabelos


O tratamento é doloroso, imagino. As conseqüências iniciais e aparentes são a apatia e os cabelos que somem. Um sumiço sem vontade, porém inevitável. É muito triste ver essa imagem, ainda que a pessoa que esteja assim seja alguém de poucos amigos ou mesmo a pessoa mais odiada do mundo.
Eu me sensibilizo, e muitos outros também. O câncer maltrata quem o acolhe. É indesejável, hospedeiro cruel que consome lentamente a vida. A cada mordida dele, vão-se segundos, minutos, horas e dias de um amanhã que continha sonhos, desejos secretos e públicos, amor para compartilhar, esposa, esposo, filhos e netos que seriam abraçados e devolveriam o mesmo afeto. É inaceitável, é agonizante e estúpido. Aliás, estupidez é um prato cheio que há na vida. Mas vamos em frente, sempre há resquício de felicidade para se viver.
Gostaria que os que possuem câncer tivessem o belíssimo câncer que consomem as árvores. Principalmente dos ipês. Como os cabelos em uma quimioterapia, as flores deles caem na primavera.
Perto de casa há uma praça. Entre os bancos sujos, uma fonte com água doente, um coreto de cidade fantasma e uma igreja católica, ilumina o grande ipê amarelo. Grande no tamanho e na beleza ímpar.
Já ouvi certas pessoas reclamarem da sujeira das flores amarelas que ele despeja no chão. As pessoas, na verdade, estão ficando cegas para as belezas naturais da vida. Rubem Alves mencionou certa vez numa crônica uma mulher que detestava um ipê pela “sujeira amarela” feita por ele. Quando li a crônica dele, imaginei que essa mulher deveria ser única. Não era. Por aqui, pertinho de casa, há várias pessoas assim.
É impressionante como muitos preferem e vibram com outras sujeiras. Na praça do ipê, quando há pedaços de papel, garrafas de vidro ou de plástico, poucas são as vozes que reclamam. O comportamento humano é bicho estranho mesmo. O ipê, com seu desfile de flores tombando no ar, é lição que não se aprende. É, na verdade, o toque secreto do prazer na alma. E prazer não se aprende, apenas se é levado por ele, sem resistência.
O mais bonito, porém, não é ver as flores do ipê que caem. O bonito é olhá-lo e saber que no próximo ano, na mesma estação, aquelas pétalas voltarão. O ipê fica seco, meio doente, para renascer com o mesmo perfume e copa colorida.
Pudera os portadores de câncer ter a certeza do ipê, ver que o cabelo que cai, só vai embora para renascer numa outra estação. Os cabelos das pessoas que têm câncer não são a sujeira florida do ipê, são fios que muitas vezes caem marcando um dia ou um mês a menos de vida.

Vitor Miranda

Papéis passados


Não há dúvida, com a passagem do tempo mudanças ocorrem e vão mastigando tudo aquilo que um dia foi alguma coisa. Vai embora a pele lisa e chega a enrugada, foge a lagarta e surge a borboleta, some um rio, uma floresta e nasce a cidade. As mudanças vão desde o pessoal ao coletivo, passando por coisas grandiosas e pelas mais insignificantes ou menos notadas.
O progresso tecnológico talvez seja um dos maiores culpados por tanta mudança que foi ou virá.(e nisso incluem-se as coisas grandiosas e menos notadas)
Prefiro, por enquanto, falar das mudanças que foram, as que virão deixo para uma outra ocasião. O objetivo aqui não é profetizar, apenas relatar a muita saudade que existe das coisas mortas pelo tempo, e as poucas euforias com algumas boas mudanças.
O meu saudosismo é simples, e talvez eu encontre companhia de algum leitor também com muita saudade de um pedaço de papel e uma caneta. Eram esses os materiais que antes se usava para escrever uma carta (lembram o que é uma carta?). Além disso eram ferramentas do padeiro e do açougueiro para fiar a compra do cliente. Caderneta e caneta...
O fato é que o computador tomou o trabalho da caneta e do papel. Não só isso, tomou outros trabalhos também. Mas fiquemos concentrados no papel e na caneta. (e a euforia que mencionei, já está registrada. Digamos que esteja na troca da caderneta do pão e da carne. Euforia morna, é verdade. Os comerciantes sabem mais do que ninguém que o progresso veio mas também vieram grandes calotes)
Agora as saudades, na verdade, uma, mas com valor de muitas.
Os recados hoje não mais vivem nas cartas ou bilhetes, navegam de forma apática no mundo virtual. O carteiro tem que se contentar em entregar contas a pagar. Orkut, MSN e torpedos via-celular seqüestraram sem resgate o trajeto do homem amarelo. Com isso, ganhou-se praticidade e rapidez. O que reclamo e encho de saudade os olhos e as mãos, que já andam com calos apenas nas pontas de tantas teclas pressionadas, é que o saboroso e ímpar contato com o papel e as letras borradas e manuais vai sumindo lá no longe da memória.
Recuso-me muitas vezes escrever com o computador. Dou uma escapada para os papéis, cola, selo e caneta, mas... as cartas até que vão, porém as respostas não chegam pelo mesmo caminho que foram. Se eu quiser as respostas de correspondências, tenho que abrir o mundo fictício de meus e-mails. Lá estão as respostas: paralisadas, sem vida, intocáveis e tristes.
Por mais que a modernidade com toda a potencialidade que possui, seja na informática ou não, transforme quase tudo e quase todos, certos prazeres são insubstituíveis. Abrir o e-mail não possui o mesmo sentimento humano de ouvir a batida de palmas do carteiro no portão ou o ruído do papel deslizando a caixinha de correio com uma carta, dos amantes, dos pais distantes, do irmão, do soldado na guerra, dos amigos..., apesar de que o próprio e-mail já está na UTI, uma vez que as pessoas preferem, várias delas, a usar mensagens instantâneas.
A modernidade levou o papel embora, está quase levando o próprio e-mail, o que fica para trás é um pouco do muito que é a escrita artesanal.

Vitor Miranda

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Dolorida eternidade


Quando eu era criança, costumava esquivar-me da morte quando ela era o assunto a ser mencionado ou ouvido. Havia um certo pavor em pronunciar a palavra e enfrentar esta grande certeza dos seres vivos. Cresci. O que era medo e matéria de maus sonhos não me assusta mais. Porém, sem dúvida, ainda é tema de conversa e leituras.
Numa aula dias atrás, uma aluna me perguntou se eu gostaria de viver para sempre. Minha resposta foi não. A pobrezinha se assustou com minha firmeza na resposta. Os jovens alimentam uma efêmera ilusão da eternidade. Primeiro acham que a juventude é eterna. Não contentes, pensam que a vida é eterna. Mas eles crescem e vêem que a eternidade realmente é mais irreal que Papai Noel.
Na conversa que tive com a aluna, comentei com ela sobre o belíssimo romance “As intermitências da morte”, do ótimo português José Saramago. Falei sobre as reflexões sobre a morte que há no livro. Importâncias que vão desde a economia ao desejo imenso de se morrer. (um desejo suave de descanso)
Dia-a-dia convivemos com a idéia do fim. Tudo que nos rodeia parece ser um prenúncio de que um dia iremos embora também. O sol nasce e morre e nasce no dia seguinte. Somos o sol que nasceu e morreu, mas não somos o sol que volta no dia seguinte. O que volta no dia seguinte são nossos descendentes que serão a noite no final do próximo dia.
Seria muito chato e daria muito trabalho aos outros se vivêssemos duzentos ou trezentos anos ou eternamente. Uma vida com sete ou oito décadas de vida bem gozadas seria suficiente para minha estadia por aqui. Mais importante que viver, é como viver.
Estar vivo é poder olhar para o dia e saber que você faz parte dele e produz para ele. Uma inatividade, a limitação aos prazeres dos olhos, tatos e outros nossos sentidos são modelos de sepultura viva.
A eternidade é dolorida e intolerável. Que bom que inventaram a morte. A vida é mais valiosa com a existência do fim.

Vitor Miranda