sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Flores e cabelos


O tratamento é doloroso, imagino. As conseqüências iniciais e aparentes são a apatia e os cabelos que somem. Um sumiço sem vontade, porém inevitável. É muito triste ver essa imagem, ainda que a pessoa que esteja assim seja alguém de poucos amigos ou mesmo a pessoa mais odiada do mundo.
Eu me sensibilizo, e muitos outros também. O câncer maltrata quem o acolhe. É indesejável, hospedeiro cruel que consome lentamente a vida. A cada mordida dele, vão-se segundos, minutos, horas e dias de um amanhã que continha sonhos, desejos secretos e públicos, amor para compartilhar, esposa, esposo, filhos e netos que seriam abraçados e devolveriam o mesmo afeto. É inaceitável, é agonizante e estúpido. Aliás, estupidez é um prato cheio que há na vida. Mas vamos em frente, sempre há resquício de felicidade para se viver.
Gostaria que os que possuem câncer tivessem o belíssimo câncer que consomem as árvores. Principalmente dos ipês. Como os cabelos em uma quimioterapia, as flores deles caem na primavera.
Perto de casa há uma praça. Entre os bancos sujos, uma fonte com água doente, um coreto de cidade fantasma e uma igreja católica, ilumina o grande ipê amarelo. Grande no tamanho e na beleza ímpar.
Já ouvi certas pessoas reclamarem da sujeira das flores amarelas que ele despeja no chão. As pessoas, na verdade, estão ficando cegas para as belezas naturais da vida. Rubem Alves mencionou certa vez numa crônica uma mulher que detestava um ipê pela “sujeira amarela” feita por ele. Quando li a crônica dele, imaginei que essa mulher deveria ser única. Não era. Por aqui, pertinho de casa, há várias pessoas assim.
É impressionante como muitos preferem e vibram com outras sujeiras. Na praça do ipê, quando há pedaços de papel, garrafas de vidro ou de plástico, poucas são as vozes que reclamam. O comportamento humano é bicho estranho mesmo. O ipê, com seu desfile de flores tombando no ar, é lição que não se aprende. É, na verdade, o toque secreto do prazer na alma. E prazer não se aprende, apenas se é levado por ele, sem resistência.
O mais bonito, porém, não é ver as flores do ipê que caem. O bonito é olhá-lo e saber que no próximo ano, na mesma estação, aquelas pétalas voltarão. O ipê fica seco, meio doente, para renascer com o mesmo perfume e copa colorida.
Pudera os portadores de câncer ter a certeza do ipê, ver que o cabelo que cai, só vai embora para renascer numa outra estação. Os cabelos das pessoas que têm câncer não são a sujeira florida do ipê, são fios que muitas vezes caem marcando um dia ou um mês a menos de vida.

Vitor Miranda

Nenhum comentário: