sábado, 25 de outubro de 2008

Metáfora, metáfora...

“Seus olhos são duas pérolas”, “Mariazinha, você é uma rosa”. Tudo bem, as duas frases estão desgastadas há muito tempo, já são clichês inquestionáveis. Mesmo assim, é inegável que possuem uma beleza, chamam a atenção, até porque não existe olho de pérola e não existe uma mulher que é uma rosa realmente. Estamos falando aí da metáfora.
Por excelência, a metáfora é uma representação, uma comparação indireta. Quando o assunto é arte, ainda mais quando é realmente “arte”, é quase certo que o artista faz uso de metáforas. Seja na pintura, na música, na literatura ou no cinema. A metáfora lá está, embelezando a linguagem, dando uma nova roupa a uma expressão. Traz a reflexão e modifica a expressão para transformar a mensagem em arte
Sendo a metáfora uma representação de alguma coisa, resta a nós aceitarmos o jogo e desvendarmos a mensagem. A luta de Dom Quixote contra os moinhos de vento é uma das mais belas metáforas literárias da literatura universal. É claro que os moinhos não eram monstros gigantes, eram metáforas. Representações de várias lutas dos homens contra suas próprias criações. Se Dom Quixote enxergasse nos moinhos apenas moinhos, já não seria arte esta obra de Miguel de Cervantes, seria um amontoado de palavras, sem beleza e reflexão.
Narrar histórias para as crianças sem a metáfora, como seria? Imaginemos. Será que contar a história dos três porquinhos de forma denotativa, considerando a realidade dos suínos, criaríamos a fantasia e passaríamos valores humanos às crianças? Se narrarmos a história de três porquinhos que moram em um chiqueiro, comem lavagem, são sujos e no natal vão para a mesa com uma maçã na boca, descartamos a metáfora e matamos informações e reflexões aos futuros adultos. Agora, se usarmos a metáfora, falaremos de três porquinhos que são bem diferentes entre eles: um não é muito preocupado e faz uma casa de palha para se proteger dos perigos do lobo mau. Um outro que é um pouco mais preocupado, só um pouquinho, ergue uma casa de madeira. O terceiro, este sim, preocupado com a segurança, constrói uma casa de paredes bem resistentes. Narrando a história assim, metaforizamos uma situação e criamos valores e reflexões aos pequenos ouvintes, além de aguçar a fantasia deles.
Picasso ao pintar o quadro Guernica, não teve dúvida: “se quero fazer arte, tenho que usar a metáfora.” E assim fez o espanhol. Com seus traços cubistas, surgiram os traços, um aqui, outro ali, mais um, e outro e eis que, estava pronta a mensagem crítica, artística dele sobre a guerra civil espanhola. Imagens fragmentadas de pessoas e animais, numa clara alusão metafórica da fragmentação do homem em conseqüência da guerra.
Por ser uma representação muitas vezes não compreendida, a metáfora em algumas situações é vista de modo literal. Se ela não é encarada como uma representação, as pessoas olham o quadro de Picasso e dizem que a pintura dele é apenas um monte de figuras quadradas, pés, braços e cabeças separadas do corpo. Ou ainda pensam que os moinhos de Dom Quixote realmente são monstros gigantes.E é justamente isso que vem ocorrendo com o sensacional filme Ensaio sobre a cegueira, do diretor brasileiro Fernando Meireles.
O filme é uma adaptação do romance homônimo do escritor português José Saramago, vencedor do Nobel de Literatura em 1998. A história é sobre uma epidemia de cegueira branca que ataca uma cidade fictícia. O governo isola os contaminados num manicômio abandonado e lá eles passam a conviver em uma sociedade de cegos, sendo que um deles, uma mulher, tem o “privilégio” de enxergar. Ela é a única que não é contaminada. Com poucas pessoas no lugar, a comida é igualmente dividida entre os cegos. Com o aumento de pessoas no recinto, um grupo, munido com arma de fogo, toma posse da comida e começa a negociá-la. O preço, inicialmente, se baseia na troca de objetos pessoais pela comida. Depois, com o fim dos objetos, as mulheres passam a ser o preço. Troca-se comida por sexo. Fora isso, são descritas e mostradas imagens de uma situação em que o homem é rebaixado à sua condição mais primata possível. As fezes, o lixo e cadáveres enfeitam o cenário, ou melhor, representam. São representações daquilo do que somos capazes de fazer. Saramago nos faz um doloroso convite para enxergamos, mesmo cegos, que a modernidade e o progresso apenas ocultam a nossa essência humana.
E por não ser visto como metáfora, o filme de Meireles tem sido muito criticado em alguns lugares. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma associação de cegos faz árduos protestos contra o filme. Dizem que é uma obra preconceituosa, que ataca a integridade dos cegos, mostrando que eles são maus, injustos e desprezíveis.
Na verdade, os cegos ianques não estão enxergando a metáfora. Para começar, será que ninguém falou a eles que a cegueira no filme é branca, e não escura? Será que é difícil entender que numa situação como essa o pior cego é o que enxerga? Afinal de contas, a situação toda é vista e sentida por uma mulher. É ela que sofre diretamente os horrores do manicômio e, posteriormente, da cidade.
A arte não é arte sem a metáfora. Para enxergá-la não se usa os olhos, mas a sensibilidade.

Vitor Miranda

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