O cinema de
2012 nos submeteu a duros castigos. Tivemos entre esses castigos mercenários e
vingadores, por exemplo. Eis, então, que dezembro para redimir os meses
anteriores entrega de bandeja um agradável presente nas telas: “As Aventuras de
PI”, dirigido por Ang Lee.
Assisti
ao filme depois de ver algumas resenhas bem favoráveis à produção e, para a
minha constatação, as resenhas não blefaram.
O
filme é uma adaptação do livro “A Vida de Pi”, do escritor Yann Martel. É bom
ressaltar a polêmica autoral que envolve a obra. O livro foi atacado por muitos
como plágio do romance “Max e os felinos”, do escritor brasileiro Moacyr Scliar.
No entanto, isso é outra história. Fiquemos com o filme como elemento de
análise.
Resumidamente,
a história é a seguinte. Uma família de indianos depois de alguns fatos – não
vêm ao caso – decide mudar-se para o Canadá e leva junto com ela os animais que
tinham em um zoológico. A mudança é feita em um navio cargueiro que, lá pelas
tantas, naufraga e no bote salva-vidas fica apenas (da família) Pi, o
protagonista, a salvo. A família toda dele (mãe, pai e irmão) morre. Para
surpresa do garoto Pi, alguns animais também estão no bote, e chegam mais dois
pelas águas. Destaca-se aqui o tigre-de-bengala, o coadjuvante que, em certos
momentos, torna-se o protagonista. Aqui novamente tem-se a eterna abordagem da
relação entre homem e animais. As diferenças são latentes entre os dois reinos,
mas humano e selvagem vão se conhecendo e criando intimidades necessárias para
sobreviver.
No
início, impossível não sofrer uma catarse com as imagens poéticas de uma Índia
exótica. São minutos de uma plástica exuberante, digna de uma descrição
romântica.
O
alto teor religioso da obra, uma tentativa de conciliação entre politeísmo hindu
e as religiões monoteístas, é enfatizado no protagonista, que vê nessa
carnavalização uma união de crenças distintas para a busca do superior, do
divino. Alegoria utópica para um mundo onde as guerras santas são uma
constante.
Das
intertextualidades proporcionadas pelas leituras do filme, também está ali um
Jó indiano. Crê piamente em deuses, perde tudo, família, bens, sofre as mais
duras provas físicas e, no entanto, a fé se mantém acesa quando poderia
facilmente ser apagada.
Do
ponto de vista mitológico e também simbólico, mais uma vez caímos em Homero. Ang Lee
faz de Pi um moderno Odisseu.
Assim
como o herói da “Odisseia”, Pi passa por inúmeras provas no oceano para voltar
para um porto seguro. E não se trata mais da casa nativa, como na epopeia de Odisseu,
mas de uma nova morada. Enfrenta “monstros gigantes” (baleia), peixes voadores,
tempestades e, poeticamente, uma ilha carnívora. Aqui se mostra a evidência
mais próxima do herói grego Odisseu. Pi, após uma boa análise sobre a ilha e
seus quase mistérios, deduz que ficar ali era automaticamente tornar-se o novo
cardápio do local. Alimenta-se dela, porém seria alimento do lugar se ali
permanecesse. O jovem faz uso da sua inteligência e, dessa forma, sua vida
continua.
O
tigre-de-bengala é mais uma alegoria interessante. Dentro da relação
intertextual com a “Odisseia”, de Homero, tem-se aqui o símbolo da
desconfiança, do inesperado. Isso porque na obra grega o protagonista convive
durante sua epopeia com uma tripulação de amigos que ora ou outra age de forma
inesperada contra Odisseu. Tudo isso por conta da desconfiança da natureza do
outro. Só para destacar uma dessas desconfianças, é só relembrar os presentes
que Odisseu ganha e, por questões de imposição do doador, ele não pode revelar
à sua tripulação. Os seus amigos de viagem, então, passam a desconfiar de que o
astuto Odisseu ganhou valiosos tesouros e não quer reparti-los. Nos dois casos,
filme e “Odisseia”, a conquista da confiança é extremamente necessária para a
sobrevivência.
Ainda
bem que há diretores como Ang Lee que olham o cinema não apenas como um produto
comercial, mas como ferramenta de arte também. A bela história de Pi nas mãos
de Lee contribuiu para salvar, em parte, o cinema de 2012.
Vitor Miranda