domingo, 4 de novembro de 2007

Loucos

Já pensou o leitor se não houvesse a loucura, os loucos, quanta literatura boa teríamos perdido? Só para citar alguns exemplos, três clássicos mundiais, “Dom Quixote” (Miguel de Cervantes), “O idiota” (Dostoiévski) e “Hamlet” (Shakespeare).
O primeiro trata-se da figura do cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, personagem que fica louco de tanto ler romances de cavalaria e, assim, sai combatendo em nome da justiça. O segundo trata-se do príncipe Míchkin que fica anos fora da Rússia para tratar-se de uma loucura na Suíça. Ao voltar à Rússia passa por várias situações dramáticas. Já em Hamlet, Ofília enlouquece e morre quando Hamlet vai embora do reino da Dinamarca. (essa uma das mortes mais belas de toda a literatura mundial de todos os tempos)
Na literatura Brasileira, a loucura também aparece. Em “O seminarista” (Bernardo Guimarães), o personagem Eugênio fica louco ao ver a amada Margarida morta; Em “O triste fim de Policarpo Quaresma” (Lima Barreto) o personagem homônimo é internado por ser julgado louco ao defender a idéia de que a língua portuguesa deveria ser substituída pelo tupi.
Exemplos à parte, o que traçarei em algumas linhas adiante será sobre o conto “O alienista”, de Machado de Assis.
O tema da narrativa é a loucura, já tão exemplificada até aqui.
Simão Bacamarte é um alienista recém-chegado à vila de Itaguaí. Com o apoio da Câmara local abre na vila um hospício, intitulado Casa Verde, para estudar e tratar os que ele considera louco. O problema surge com os motivos das internações.
Simão Bacamarte considera loucura a modéstia, a vaidade, a admiração, a solidariedade e os vícios. Com isso, várias são as pessoas recolhidas à Casa Verde.
O resumo é esse, mas não pense o leitor que a sinopse adianta o grande valor desse grandioso conto machadiano.
A leitura se torna prazerosa e o leitor absorve a mensagem de Machado ao ler cada palavra da obra. Enxerga nela a montagem dos significados que se juntam na ironia fina machadiana.
A ironia, esse recurso textual, é uma das grandes chaves para se entender a maioria da obra de Machado de Assis. Antes de qualquer coisa, o cientificismo encontrado em “O alienista” é usado para ironizar o próprio cientificismo. Já na primeira página, o leitor encontra uma escolha científica de Bacamarte para o matrimônio e geração de seus filhos. Ele casa-se com D. Evarista por ela, segundo seus estudos científicos, ter atributos que lhe garantiriam filhos robustos. Engana-se: ela não lhe gera nenhum filho.
A crítica de Machado de Assis em “O alienista” demonstra os limites de uma ciência que, com teorias e mais teorias, impunha uma empáfia de querer ter as respostas para todas as questões da humanidade.
A ciência é falha, as crenças também. Mas do que um pessimista, Machado se comporta como um irônico cético numa humanidade minúscula e individualista. Não há relações humanas puras. Itaguaí é uma vila que existe em cada um de nós. É a representação de nossos defeitos e poucas virtudes.
A loucura é um mundo desconhecido como o próprio homem. Cada um é uma ilha intransponível habitada por si próprio. Bacamarte é o símbolo de um cientificismo fracassado que fechou o século XIX.
O final do livro é criativo e genial. É, simplesmente, uma metáfora da fracassada ciência que, quando beneficia o homem, cobra-lhe um valor alto por isso.
O atencioso leitor percebe na leitura de “O alienista” uma linguagem histórica de um Brasil que se expandia com o progresso urbano. Machado faz um trabalho primoroso, rico e oral com os diálogos e o discurso do narrador.
A inclusão de classes sociais distintas como o barbeiro, médico e vereadores não é para se fazer um contraste entre elas, mas para mostrar que são equivalentes no campo moral e psicológico.
A moral é deixada de lado para atingir interesses próprios, como o caso do barbeiro Porfírio que lidera a “Revolta dos Canjicas” e se vê eufórico com a oportunidade de governar Itaguaí. Na parte psicológica, Machado aborda personagens ambiciosas, vingativas, acomodadas e violentas.
A loucura funciona como um grande pano de fundo para que o leitor perceba que o homem do século XIX é o mesmo de agora e de sempre.
Salve Machado de Assis, antes que Simão Bacamarte o interne.
Vitor Miranda

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