A mudança na ortografia da língua portuguesa não poderia ter ocorrido em momento mais inoportuno que o atual. Considerando que o mundo passa por duas crises, uma econômica e outra ambiental, é no mínimo uma questão impensável colocar em prática essas mudanças, cujo acordo foi selado em 1990.
O Brasil, por exemplo, de ponta a ponta terá que recolher os livros didáticos das inúmeras escolas e substituí-los por outros com a nova ortografia. Numa só ação, já se tem dois agravantes ao país e ao mundo. As cifras usadas para a compra dos livros serão enormes. O Governo gastará valores altíssimos numa época em que gastar, ainda mais dinheiro público, requer muito planejamento, uma vez que a crise financeira global surge ditando regras para que os países não caiam em problemas altíssimos de desemprego, por exemplo. Se falta dinheiro aos cofres públicos, o país não cresce, regride. Além disso, para se fazer os livros, muita floresta diminuirá. Mesmo que se use futuramente a reciclagem dos antigos livros, haverá a necessidade de árvores no chão. O planeta que já está com seu verde na UTI, agravará um pouco mais o quadro.
A unificação da língua não pode ser encarada como o caminho para que o idioma seja único. É impossível ele ser um só. O idioma português como qualquer outro, não fica restrito a letras no papel. Ele faz parte da oralidade e da mistura com linguagens locais e estrangeiras, ainda mais quando se trata de uma nação em que povos do mundo inteiro fazem parte da formação de um povo colonizado.
A língua é um organismo em constante mutação. Sua transformação se dá de modo natural pelos falantes. O “você” que já foi dito de tantas formas, já é usado como “ocê”. Tal modificação não aconteceu devido a vontade de governantes, ocorreu porque o dia-a-dia nos pediu. Esse é um claro exemplo da rapidez do mundo contemporâneo que exige que a comunicação seja rápida também.
Por mais que se busque a união do nosso riquíssimo idioma entre os países lusófonos, ela sempre será incompleta. E isso não é ruim. Acontece que o idioma está preso, entre outras coisas, à cultura local. No Brasil, cueca continuará sendo peça íntima masculina e em Portugal continuará sendo feminina. Embora as palavras possuam mesmo significante (som), são constituídas de significados diferentes. É hilário dizer no Brasil: “Vá para o rabo da bicha”. Em Portugal, entretanto, não. Lá, rabo pode ser usado como final e bicha como fila. Logo, “Vá para o rabo da bicha” em português lusitano quer dizer “Vá para o final da fila”. É um exemplo totalmente cultural de dois diferentes povos que falam uma mesma língua.
Os portugueses são os que mais têm resistido ao acordo, dizem que os brasileiros querem abrasileirar o idioma, eliminando acentos e hífens. De um modo geral, não cabe aos nossos colonizadores pensar que eles são donos da língua portuguesa. Independente das transformações serem boas ou ruins, não é Portugal que baterá o martelo dando a opinião decisiva sobre as modificações na ortografia. Uma vez que um país espalha sua língua oficial em outros países, ele jamais poderá dizer que ainda tem plenos poderes sobre ela. É como o filho que é criado pelos pais e mais tarde atinge a maioridade e torna-se independente. Brasil, Angola, Moçambique são alguns dos filhos criados pela língua portuguesa dos portugueses que, com o passar dos anos e anos, já possuem sua língua portuguesa com muitas modificações em relação àquela que lhe foi imposta.
Embora o acordo ortográfico fique restrito à escrita, é impossível que não se discuta o maior uso da língua, que é na oralidade. Atingir a unificação do idioma é tarefa impossível. O falar das pessoas está condicionado pelo meio que vivem e da cultura que vivem. As diferenças ortográficas têm como consequência a oralidade de cada país. Muito do que é falado vai para o papel. Não podemos nos esquecer de que antes de o homem inventar as regras gramaticais, ele já usava as palavras na oralidade. A invenção de regras foi uma maneira de organizar a língua para que, talvez, ficasse registrada fisicamente. Não se pode, no entanto, ignorar que uma língua registrada é um objeto estático, e só possui valor quando parte para seu uso comunicativo, principalmente na oralidade do cotidiano.