domingo, 11 de julho de 2010

Criador e criatura

Em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, uma das passagens mais memoráveis da obra é a batalha entre Dom Quixote e os moinhos de vento. Trata-se aqui de uma metáfora. Em resumo, era uma luta entre o homem e a máquina, esta vista pelo herói como monstruosos gigantes.

Naquele tempo, o moinho de vento substituía vários trabalhadores que tinham a função de moer o trigo, por exemplo. Consequentemente, esses trabalhadores perdiam seus empregos de “moedores” e deveriam procurar outro trabalho, pois os moinhos eram movidos a vento, não geravam os gastos humanos e, assim, o patrão tinha um bom negócio em mãos.

Quatro séculos depois, temos a mesma luta de Dom Quixote. Os gigantes se multiplicaram com os avanços tecnológicos.

É inegável que a tecnologia nos trouxe enormes benefícios. Conforto, praticidade e maior expectativa de vida, por exemplo, são pontos positivos que mudaram a vida da humanidade. Ocorre, porém, que os aspectos negativos muitas vezes se manifestam de modo ainda mais contundentes do que os positivos.

Um dos grandes pontos ruins da tecnologia está na automatização do trabalho. É comum vermos em vários setores máquinas trabalhando no lugar de pessoas. Os bancos, em geral, estão cada vez mais com um número menor de bancários. Isso ocorre porque um caixa-eletrônico ou serviços via-internet fazem o serviço que antes eram exclusivos dessa classe.

Essa substituição não para por aqui. Guaritas de shoppings centers, lojas vendendo produtos on line e empresas de telefonia com atendimento computadorizado são outras substituições de gente por máquina. Como alternativa alguns defendem que os empregos substituídos geram outros trabalhos para que tais desempregados se empreguem. É claro que outros empregos são criados com o avanço tecnológico, pois se há uma máquina que atende no banco é evidente que alguém a fabricou. Contudo, os empregos gerados pela fabricação de uma máquina como essa, não são proporcionais na mesma medida do número de pessoas que ela pôs na rua. Ao fazer o trabalho de dez pessoas, ela cria no máximo três outros empregos.

A substituição de criador por criatura se acentua com grande rapidez a cada dia pela preocupação maior das grandes empresas, que é o lucro. Vivemos em um sistema que para sobreviver procura sempre diminuir os gastos para que o lucro seja maior. Com isso é evidente que a troca de homem por máquina seja uma ação comum nesse âmbito. Com mais e mais pessoas sem trabalho, o custo da mão-de-obra humana abaixa e a prática do trabalho praticamente escravo se expande. Países emergentes e subdesenvolvidos como os africanos e mesmo a China são exemplos de lugares onde se produz muito e paga-se pouco aos trabalhadores que, entre eles, boa parte é de criança. São essas pessoas que possibilitam ao mercado ocidental produtos de grandes marcas para que seus clientes, por exemplo, usem um tênis da última moda. Financiamos, assim, a exploração do trabalho escravo e infantil.

Mesmo apontando e reconhecendo os benefícios da tecnologia, devemos refletir a seguinte questão: quem ela está beneficiando com conforto, praticidade e maior expectativa de vida? Na verdade, uma minoria da população mundial.

O que abastece a tecnologia é a exploração do mundo globalizado expandindo mais e mais as desigualdades sociais. Os efeitos de tamanha desigualdade e incoerência trarão consequências ainda maiores que o desemprego, isso porque este desencadeia outras mazelas. Desemprego atrai o desespero e em seguida alimenta a violência. Quem não tem, vai procurar obter de outras formas, afinal, é preciso sobreviver.

Não se vê em parte alguma o governo trabalhando com políticas que visam contornar a situação. Elegemos nossos governantes, mas eles não governam por nós. Temos uma democracia fantasiosa. Quem, de fato, dita como deve ser e não ser é o capital especulativo. As multinacionais vêm, fixam-se nos países e dão a sua cartilha para ser seguida. São simples e diretas, ou o governo age de acordo com as ideias que exigem ou vão embora. E o que oferecem? Um número mínimo de empregos para a população e o maior possível para as máquinas, pois estas não criticam o patrão, não têm férias, 13° salário, não engravidam, não vão à justiça ou filiam-se a sindicatos.

Enquanto a ditadura do dinheiro ditar as regras tecnológicas, as classes menos abastadas e sem chances reais de uma vida melhor continuarão engrossando a massa de prejudicados pela tecnologia. Em um breve futuro, não só essa classe será a prejudicada, mas sim todos nós. É preciso que rapidamente os governos e as pessoas em geral acordem para esse perigo e passem a ditar as regras ditas hoje pelas grandes multinacionais. Somente assim poderemos extrair da tecnologia o que ela realmente tem de bom e descartar seu lado ruim.

Vitor Miranda

2 comentários:

Pedro Valdevite disse...

Creio que seja insuficiente tomar algum partido individual em relação a tal problema, que vem assumindo proporções cada vez mais crescente desde o capitalismo e seus derivados como Taylorismo e Fordismo.
Grandes corporações industriais assumiram um papel dominador em relação as rédeas do mundo moderno; Boicotando governos e intitulando modas que obviamente gerem beneficio próprio.
Às vezes chego à me perguntar se tal sistema possa realmente,um dia, ser substituído pelo socialismo , não ditatorial e individualista, mas sim o igualitário do manifesto comunista escrito por Marx e Engels.

Vitor Miranda disse...

Acho que não é propriamente uma questão de substituição do atual sistema dominante, mas sim um "suicídio".
A maneira como o capitalismo se mantém é insustentável, tem prazo para acabar. Boa parte do consumismo tem como matéria-prima os recursos naturais que, utilizados como vêm sendo, logo acabarão.
O comunismo proposto por Marx e Engels era utópico. O próprio Marx dizia que "tudo que é sólido se desmancha no ar". Teorias antes sólidas vão se modificando ao longo dos anos. O capitalismo e comunismo, na minha opinião, são fogem à regra.
Há muita coisa aproveitável no socialismo, porém muitas outras devem ser modificadas e algumas apenas consideradas utópicas.