quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Amargo lar


            O recente romance, do premiado escritor Menalton Braff, O Casarão da Rua do Rosário resgata uma importante forma de composição de conteúdo muito explorada na história da literatura: o espaço-moradia como elemento determinante da narrativa.
            Na história da literatura, vários gênios das letras criaram verdadeiras obras-primas ao dar “vida” a moradias que, diretamente ou indiretamente, funcionaram como partes fundamentais das narrativas. Exemplos não faltam. Emily Brontë em O Morro dos Ventos Uivantes tece uma história de amor e vingança em que a propriedade serve de casulo a conflitos e mesmo uma obsessão de vingança de seu protagonista, Heathcliff. Em A Queda da Casa de Usher, Edgard Allan Poe cria um conto em que a casa com seu ar soturno e medieval antecipa as principais ações e comportamentos humanos. No Brasil, Lúcio Cardoso, na modernidade, escreve seu principal romance justamente tendo uma casa, digamos, como protagonista: Crônica da Casa Assassinada. No romance o autor apresenta ao leitor uma casa quase viva, onde os segredos e conflitos entre os familiares se inflamam e incendeiam os passos de cada fato narrado. Cartas e diários vão fazendo sugestões das mais intensas possíveis, como um provável caso incestuoso entre mãe e filho. Um quarto exemplo que podemos citar é o conto Nada e a nossa condição, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras Estórias. No conto, o protagonista Antônio reside numa grande propriedade rural onde a casa da fazenda é o espaço central da narrativa. Com o passar do tempo, morte da esposa e a mudança das filhas casadas para outros centros, Antônio vai se fechando, entristecido, na casa até morrer no menor quarto da enorme propriedade. Por fim, o espaço todo pega fogo. Consuma-se, assim, a morte recíproca de posse e possuidor.
            Braff em seu romance narra a saga de uma família descendente de portugueses, os Gouveia de Guimarães, que ostenta um orgulho quase monárquico e a todo custo procura blindar a decadência pela qual passa. Trata-se de uma família de sete irmãos, cinco irmãs e dois irmãos, em que a matriarca solteirona Benvinda procura reinar o casarão ditando ordens e impondo comportamentos aos familiares. O pano de fundo temporal é a ditadura militar brasileira. Diante esse cenário dos Gouveia de Guimarães e a ditadura militar, o narrador vai orquestrando um conflito de ordem familiar e político-social.
            Dos sete irmãos, três assumem um papel central no romance. Benvinda (a matriarca), Isaura (irmã caçula, uma antítese de Benvinda, pois não se prende a conservadorismos e não aceita quaisquer ordens da irmã) e, por fim, Ataulfo – irmão com problemas mentais e exilado numa edícula do casarão.           
          Menalton, nessa obra, entra em um terreno perigoso de se sair, isto é, fazer um romance panfletário, dado que o pano de fundo é político. Com maestria já comprovada em outras obras, o escritor sai ileso desse problema, não faz um romance panfletário. O que se sobressai no livro é um estilo vibrante de composição, com doses poéticas, de quem claramente possui em seu DNA traços de Clarice Lispector e José Saramago. Deste vem uma pontuação de ruptura (Mas eles são todos iguais?, perguntou excitada...), daquela vêm metáforas insólitas ou um discurso elíptico (O inverno tinha descido na geada à noite e subia no bafo da menina, pasta na mão, no caminho da escola). Da junção de suas influências, Braff cria seu estilo discursivo, pessoal, e acrescenta arte às letras brasileiras. 
            Os nomes são um trabalho especial à parte. Benvinda recebe um nome irônico, afinal, não se trata de uma boa hospitaleira. Por ela, a irmã rebelde Isaura não moraria com os filhos no casarão. Isaura, depois de um bom tempo, retorna ao casarão por necessidade de moradia, uma vez que seu marido – Bernardo – sumira pelas mãos da ditadura militar. Já a rua do casarão, Rosário, é claramente uma referência ao catolicismo efervescente das irmãs Gouveia de Guimarães.
            O casarão para Benvinda é um lugar sagrado, não pode ser maculado por aquilo que defende como profano, subversivo ou vergonhoso. Diante isso, ouvir missa pelo rádio no casarão, rejeitar as ideias esquerdistas e ancorar Ataulfo nos fundos da propriedade tornam-se formas de preservação da moradia, ou seja, o passado com suas regras e empáfias não pode ser alterado. Porém essa preservação se mostra ineficaz quando, na construção de um prédio em frente ao casarão, as irmãs percebem que o progresso devora sem mastigar aquilo que, até então, parecia eterno, inviolável. Os tempos não são mais os mesmos, é hora de encarar as mudanças (Em casa as irmãs percebiam assustadas que o mundo girava, e não discutiam mais a inutilidade de mulher na escola...).
            Assim como no conto de Guimarães Rosa, a casa vai sendo apagada aos poucos pelo tempo e morte de quem a habitava.
            Benvinda é o sistema ditatorial decadente, que reinou e aos poucos foi perdendo a coroa e o trono para um desejo de mudança, contestação. Nesse caso, a contestação é o novo, a caçula Isaura (professora, símbolo do conhecimento e razão, mãe-nação que abraça os filhos).
            Em Ataulfo encontramos uma alegoria filosófica. É o bom selvagem de Rousseau.Ele é quem guarda, entre os irmãos, o sujeito que não foi corrompido socialmente (Tio Ataulfo era indiferente a muitas coisas para as quais dávamos a maior importância. Questões de etiqueta, diferenças de qualidade em geral não pareciam ocupar a sua mente.). Ataulfo preserva sua identidade de homem ligado à natureza e dela torna-se cúmplice: planta e admira ouvir pássaros. É a poesia do romance.
            O romance, no conjunto de seu contexto, deixa a ideia de que Isaura foi um Heathcliff, voltou para conquistar a casa que nunca deixou de ser sua. Benvinda padece como Antônio, do conto rosaneano, quando vê que seu amado casarão perdeu a vitalidade. No conto de Guimarães a solidão assassina o casarão da fazenda, em O Casarão da Rua do Rosário é o progresso com suas novas ideias que extermina a imponência da casa dos Gouveia de Guimarães.
            O desfecho da obra deixa claro uma velha máxima marxista de que Tudo que é sólido se desmancha no ar. Afinal, profetiza o narrador: Um dia, alguém terá a ideia de construir um condomínio fechado onde existiu um casarão, e ele será apenas uma lembrança, até se tornar discurso.
            Vitor Miranda

3 comentários:

Natasha disse...

Parabéns pela resenha, Vitinho!
Acredito que tenha instigado a leitura de quem ainda não teve contato com essa prosa poética do Menalton.
O espaço literário, cuja teoria é cara a nós, não?, encontra muita ressonância nesta obra.
Fiz uma resenha acadêmica do Tapete de silêncio, que submeti recentemente à análise para publicação. Comecei a do Casarão, mas ainda não terminei. rs
Quando eu terminar, compartilho minha visão também!

Obrigada pelo texto!

Bjoo
Natasha

Vitor Miranda disse...

Assim que fizer sua resenha, me envia para eu ler. Será um prazer.
Ah, e sim, o espaço é uma vertente que nós não mais conseguimos passar sem pregar os olhos nele. Ao ler uma obra literária, esse é um caminho em que sempre ando. Você? Sempre está lá também. rs
Valeu pela visita e comentário.

Beijos
Vitor

Vitor Miranda disse...
Este comentário foi removido pelo autor.