O
recente romance, do premiado escritor Menalton Braff, O Casarão da Rua do Rosário resgata uma importante forma de
composição de conteúdo muito explorada na história da literatura: o
espaço-moradia como elemento determinante da narrativa.
Na
história da literatura, vários gênios das letras criaram verdadeiras
obras-primas ao dar “vida” a moradias que, diretamente ou indiretamente,
funcionaram como partes fundamentais das narrativas. Exemplos não faltam. Emily
Brontë em O Morro dos
Ventos Uivantes tece uma história de amor e vingança em que a propriedade
serve de casulo a conflitos e mesmo uma obsessão de vingança de seu
protagonista, Heathcliff. Em A Queda da Casa de Usher, Edgard Allan Poe cria
um conto em que a casa com seu ar soturno e medieval antecipa as principais
ações e comportamentos humanos. No Brasil, Lúcio Cardoso, na modernidade,
escreve seu principal romance justamente tendo uma casa, digamos, como
protagonista: Crônica da Casa Assassinada.
No romance o autor apresenta ao leitor uma casa quase viva, onde os segredos e
conflitos entre os familiares se inflamam e incendeiam os passos de cada fato
narrado. Cartas e diários vão fazendo sugestões das mais intensas possíveis,
como um provável caso incestuoso entre mãe e filho. Um quarto exemplo que
podemos citar é o conto Nada e a nossa
condição, de João Guimarães Rosa, publicado no livro Primeiras Estórias. No conto, o protagonista Antônio reside numa
grande propriedade rural onde a casa da fazenda é o espaço central da
narrativa. Com o passar do tempo, morte da esposa e a mudança das filhas
casadas para outros centros, Antônio vai se fechando, entristecido, na casa até
morrer no menor quarto da enorme propriedade. Por fim, o espaço todo pega fogo.
Consuma-se, assim, a morte recíproca de posse e possuidor.
Braff
em seu romance narra a saga de uma família descendente de portugueses, os
Gouveia de Guimarães, que ostenta um orgulho quase monárquico e a todo custo
procura blindar a decadência pela qual passa. Trata-se de uma família de sete
irmãos, cinco irmãs e dois irmãos, em que a matriarca solteirona Benvinda
procura reinar o casarão ditando ordens e impondo comportamentos aos
familiares. O pano de fundo temporal é a ditadura militar brasileira. Diante
esse cenário dos Gouveia de Guimarães e a ditadura militar, o narrador vai
orquestrando um conflito de ordem familiar e político-social.
Dos
sete irmãos, três assumem um papel central no romance. Benvinda (a matriarca),
Isaura (irmã caçula, uma antítese de Benvinda, pois não se prende a conservadorismos
e não aceita quaisquer ordens da irmã) e, por fim, Ataulfo – irmão com
problemas mentais e exilado numa edícula do casarão.
Menalton, nessa obra, entra em um terreno perigoso de se sair, isto é, fazer um romance panfletário, dado que o pano de fundo é político. Com maestria já comprovada em outras obras, o escritor sai ileso desse problema, não faz um romance panfletário. O que se sobressai no livro é um estilo vibrante de composição, com doses poéticas, de quem claramente possuiem seu DNA traços de Clarice
Lispector e José Saramago. Deste vem uma pontuação de ruptura (Mas eles são todos iguais?, perguntou
excitada...), daquela vêm metáforas insólitas ou um discurso elíptico (O inverno tinha descido na geada à noite e
subia no bafo da menina, pasta na mão, no caminho da escola). Da junção de
suas influências, Braff cria seu estilo discursivo, pessoal, e acrescenta arte
às letras brasileiras.
Menalton, nessa obra, entra em um terreno perigoso de se sair, isto é, fazer um romance panfletário, dado que o pano de fundo é político. Com maestria já comprovada em outras obras, o escritor sai ileso desse problema, não faz um romance panfletário. O que se sobressai no livro é um estilo vibrante de composição, com doses poéticas, de quem claramente possui
Os
nomes são um trabalho especial à parte. Benvinda recebe um nome irônico,
afinal, não se trata de uma boa hospitaleira. Por ela, a irmã rebelde Isaura
não moraria com os filhos no casarão. Isaura, depois de um bom tempo, retorna
ao casarão por necessidade de moradia, uma vez que seu marido – Bernardo –
sumira pelas mãos da ditadura militar. Já a rua do casarão, Rosário, é
claramente uma referência ao catolicismo efervescente das irmãs Gouveia de
Guimarães.
O
casarão para Benvinda é um lugar sagrado, não pode ser maculado por aquilo que
defende como profano, subversivo ou vergonhoso. Diante isso, ouvir missa pelo
rádio no casarão, rejeitar as ideias esquerdistas e ancorar Ataulfo nos fundos
da propriedade tornam-se formas de preservação da moradia, ou seja, o passado
com suas regras e empáfias não pode ser alterado. Porém essa preservação se
mostra ineficaz quando, na construção de um prédio em frente ao casarão, as
irmãs percebem que o progresso devora sem mastigar aquilo que, até então,
parecia eterno, inviolável. Os tempos não são mais os mesmos, é hora de encarar
as mudanças (Em casa as irmãs percebiam
assustadas que o mundo girava, e não discutiam mais a inutilidade de mulher na
escola...).
Assim
como no conto de Guimarães Rosa, a casa vai sendo apagada aos poucos pelo tempo
e morte de quem a habitava.
Benvinda
é o sistema ditatorial decadente, que reinou e aos poucos foi perdendo a coroa e
o trono para um desejo de mudança, contestação. Nesse caso, a contestação é o
novo, a caçula Isaura (professora, símbolo do conhecimento e razão, mãe-nação
que abraça os filhos).
Em
Ataulfo encontramos uma alegoria filosófica. É o bom selvagem de Rousseau.Ele é quem guarda, entre os irmãos, o
sujeito que não foi corrompido socialmente (Tio
Ataulfo era indiferente a muitas coisas para as quais dávamos a maior
importância. Questões de etiqueta, diferenças de qualidade em geral não
pareciam ocupar a sua mente.). Ataulfo preserva sua identidade de homem
ligado à natureza e dela torna-se cúmplice: planta e admira ouvir pássaros. É a
poesia do romance.
O
romance, no conjunto de seu contexto, deixa a ideia de que Isaura foi um
Heathcliff, voltou para conquistar a casa que nunca deixou de ser sua. Benvinda
padece como Antônio, do conto rosaneano, quando vê que seu amado casarão perdeu
a vitalidade. No conto de Guimarães a solidão assassina o casarão da fazenda, em O
Casarão da Rua do
Rosário é o progresso com suas novas ideias que extermina a imponência da
casa dos Gouveia de Guimarães.
O
desfecho da obra deixa claro uma velha máxima marxista de que Tudo que é sólido se desmancha no ar.
Afinal, profetiza o narrador: Um dia,
alguém terá a ideia de construir um condomínio fechado onde existiu um casarão,
e ele será apenas uma lembrança, até se tornar discurso.
Vitor Miranda
3 comentários:
Parabéns pela resenha, Vitinho!
Acredito que tenha instigado a leitura de quem ainda não teve contato com essa prosa poética do Menalton.
O espaço literário, cuja teoria é cara a nós, não?, encontra muita ressonância nesta obra.
Fiz uma resenha acadêmica do Tapete de silêncio, que submeti recentemente à análise para publicação. Comecei a do Casarão, mas ainda não terminei. rs
Quando eu terminar, compartilho minha visão também!
Obrigada pelo texto!
Bjoo
Natasha
Assim que fizer sua resenha, me envia para eu ler. Será um prazer.
Ah, e sim, o espaço é uma vertente que nós não mais conseguimos passar sem pregar os olhos nele. Ao ler uma obra literária, esse é um caminho em que sempre ando. Você? Sempre está lá também. rs
Valeu pela visita e comentário.
Beijos
Vitor
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