Eça de Queiroz não está entre meus autores
preferidos, mas certamente entre aqueles que considero um dos maiores
escritores da língua portuguesa. Constatei isso mais uma vez. Li, recentemente,
até então inédito para mim, o seu romance “A Relíquia”. Saí do livro dando boas
risadas e aplaudindo o humor cáustico desse homem das letras portuguesas.
A obra narra uma história cheia de
hipocrisias e conservadorismo lusitano. Seu narrador é o protagonista
Teodorico. Órfão de pai e mãe, ele é criado por uma tia que é rica e só tem o
sobrinho como parente e, diretamente, único herdeiro da sua fortuna. O nome
dela é Patrocínio das Neves, portuguesa católica acima de tudo.
A fim de agradar a tia, provar seu
catolicismo inexistente e, assim, ganhar a confiança de Titi (apelido de
Patrocínio das Neves), Teodorico faz uma viagem de peregrinação a Jerusalém
para de lá trazer objetos santos e, dessa forma, trazer dias melhores à saúde debilitada
de sua parenta. Mas Titi não aceitará nenhum desvio de conduta (principalmente
envolvimento “amoroso”) de seu sobrinho para que ele possa ser seu herdeiro.
Ela, uma forte caricatura do mais alto moralismo cristão, abomina tal ação,
pois considera isso pecaminoso e vergonhoso. Ocorre, no entanto, que Teodorico
é mulherengo. Com esse comportamento ele acaba não recebendo a fortuna de Titi.
A tia do rapaz deixa a maior parte de seus bens à igreja.
Enredo simples: “herança, herdeiro
único, órfão... E é exatamente com essa trama básica em que encontramos o valor
das letras de Eça de Queiroz. Para abordar tamanha simplicidade e dar a ela um
alto valor literário, o autor compõe seus capítulos com muita ironia e críticas,
ora diretas ora indiretas à sua sociedade portuguesa.
Claramente temos um simbolismo
antagônico entre os parentes: Patrocínio das Neves é o Portugal religioso preso
ao passado. Já Teodorico é o Portugal jovem (e minoria) que não vê os valores
religiosos como fundamentais para a vida.
No plano individual, Teodorico é o jovem cheio de
impulsos voltados para os prazeres típicos dessa idade. Envolve-se facilmente
com mulheres e em curtos intervalos comporta-se como se estivesse encontrado o
amor da vida. É visível, aqui, a notória inexperiência amorosa pela qual a
maioria da juventude passa.
No início do livro, uma passagem de
destaque e sutil está logo na chegada do então menino Teodorico à casa da tia.
O sobrinho, surpreso com tanto ouro ornamentando Jesus num oratório da casa,
pergunta se aquele ser divino também era cheio de ouro no céu. A inocência da
criança em querer entender a ilustração do oratório ganha destaque porque
trata-se de uma ingenuidade natural, típica dessa fase da vida. Em contraponto
a isso está a ingenuidade da tia, que se manifesta, principalmente, em relação
aos objetos da Terra Santa, os quais ela considera com poderes divinos. Essa
ingenuidade advém de um alto teor religioso. Patrocínio é um Portugal ingênuo,
enganado por suas ideologias medievais num mundo moderno onde os grilhões devem
ser arrebentados para encontrar o desenvolvimento da nação.
Merece destaque, ainda, uma passagem
do romance em que
Teodorico sonha com o diabo. Entre eles ocorre um diálogo. O diabo
aponta alguns exemplos das mazelas humanas e faz uma revisão histórica delas
desde tempos remotos até a chegada do cristianismo. Teodorico, pensando que o
diabo está entristecido por achar que a chegada de Cristo findaria as mazelas
do mundo, tenta consolá-lo dizendo que coisas ruins ou piores ocorrerão no
futuro. Dessa abordagem, vem o caráter profético de Eça de Queiroz. Como se ele
antecipasse o holocausto nazista, Teodorico diz que futuramente haverá
fogueiras para queimar judeus. É o Realismo/Naturalismo de Eça antecipando um
dos fatos mais marcantes do século XX ao sugerir uma forma desumana extrema de
intolerância.
A relíquia a que o título do texto
faz referência é uma coroa de espinhos. E nem precisa dizer que coroa é essa,
certo? Essa falsa coroa de Cristo é levada por Teodorico até Portugal, à tia,
que por alguns momentos pensa que está com um dos objetos da dor do Messias. Para
outras pessoas do círculo religioso de Titi, o jovem traz frascos com água do
Jordão, pregos “da cruz” do martírio de Cristo entre outros artefatos
“sagrados”.
Já no final da obra, mesmo não
recebendo a herança maior de Patrocínio das Neves, Teodorico percebe que o
comércio religioso é extremamente lucrativo. Mais uma vez profético o Eça?
Certamente. Os vendilhões do templo não foram expulsos, e se foram, não levaram
Cristo a sério e voltaram. Eis, novamente, a ironia saborosa de Eça de Queiroz
fazendo uma importação de uma conhecida passagem bíblica.
“A Relíquia” é um romance que merece
uma leitura de quem admira um bom texto em que a linguagem bem manipulada e
teor crítico dão as cartas. Sem dúvida, estamos diante de uma grande obra do
nome maior do Realismo/Naturalismo luso.
Vitor Miranda
5 comentários:
Nem comecei a ler mas o título já me chamou atenção...
Gostei!! Uma boa dica... Já está na fila para ler nas férias, beijos!!
Mariana, certamente gostará do livro. A ironia do Eça e a crítica ao pensamento retrógrado português fazem dessa obra uma verdadeira tentação de leitura.
Obrigado pela visita e comentários.
Beijos
Vitinho, sua resenha faz com que eu queira muito ler essa obra!
Será que o trecho que você destacou da conversa entre Teodorico e o diabo serviu, talvez, de inspiração para o diálogo entre o Jesus e o diabo de O evangelho segundo Jesus Cristo (1991)?
Comparativamente, o diabo do Saramago também vai enumerar as desgraças futuras que atingiriam os humanos...
Ah, achei o título do post muito criativo! Parabéns.
Bjão
Natasha
Olha, Nat, se não serviu diretamente ao Saramago, talvez tenha servido indiretamente. Acho fascinante esse tipo de "diálogo" entre as obras. Enriquece muito!
Muito obrigado pela visita e comentários aqui no blog.
Beijos
Vitor
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