Família, família, papai, mamãe, titia / Família almoça
junto todo dia e nunca perde essa mania. Esses
versos de uma conhecida música do grupo Titãs retrata uma típica família sempre
junta em seu cotidiano. Isso, no entanto, não é o que se pode afirmar a
respeito do grande filme Álbum de Família,
do diretor John Wells. Na história, a matriarca da família – Violet Weston
(Meryl Streep) – está com câncer e suas três filhas, entre elas Barbara (Julia
Roberts), diante dessa situação e do desaparecimento do pai, se veem na quase
obrigação de voltar à casa materna para
fazer, digamos, o social ou diminuir uns numerosos pesos de consciência. Moram
longe, afastadas da mãe e do pai. O problema ao rebento é aguentar a língua
afiada e ácida de Violet, que mesmo sendo consumida pelo câncer de boca,
dispara sem trégua seu arsenal verbal contra todos. Trata-se de uma oportuna ocasião
para externar quem é quem de fato nessa célula social doente.
É um filme em que a voz feminina
toma conta de todo o universo ali criado. Não é exagero apontar semelhanças
entre seu enredo e algumas histórias do livro Laços de Família, de Clarice Lispector, especialmente ao genial
conto Feliz Aniversário. No conto,
Clarice narra uma festa de aniversário de uma mulher quase centenária cujos
filhos festejam a data contrariados. Um deles, inclusive, nem vai. Manda a
esposa ir para representá-lo. Durante a narrativa as falsidades entre todos são
reveladas e, asperamente, a protagonista de quase um século descarrega sua
visão crítica sobre a família que a rodeia. Ela sabe que o maior desejo de
todos era estar longe de sua casa, pelo menos na rua, livres do núcleo
familiar.
Tanto Clarice quanto John Wells moldam personagens femininas fortes e
impactantes que protagonizam a quebra de teimosas máscaras de uma entidade há
muito tempo em declínio: a família.
O câncer corrosivo de Violet ganha
papéis simétricos com a relação existente entre ela, marido e as filhas. A
relação familiar ao ser verbalizada assume o caráter da corrosão que até então estava,
aparentemente, muito bem implícita. É uma família nada empática. Acima de tudo
estão os interesses particulares de cada membro. Uma irmã sistematicamente pensa
no casamento por interesse com um adulto-adolescente cheio da grana. Outra
busca alguém para não ficar solteirona. Já Bárbara, uma interpretação gigante
de Julia Roberts, vaga sem rumo e, certamente, uma das menos preparadas para
suportar os problemas clínicos da mãe. Com uma filha adolescente problemática
(eis aqui um pleonasmo) e o divórcio, resta a Bárbara seguir em frente buscando
um novo rumo. Mas como? A cena final do filme, para ilustrar a busca de novos
rumos ou a desorientação, chega a simbolizar a condição da personagem de Julia
Roberts.
Assistir a Álbum de Família é ter a coragem de assumir que não estamos
exclusivamente diante uma obra fictícia. O desmoronamento familiar desse álbum impera
em diversos lares e, muitas vezes, por convenção preferimos esconder. Somos,
compramos e vendemos imagens. O que querem de nós nem sempre podemos ofertar ou
adquirir. Idealizar o parentesco é tempo perdido. Há sempre um câncer nessas
relações se mostrando ora benigno, ora maligno.
Álbum
de Família não tem a pretensão de dar lições de moral como: "Ame seus
pais, irmãos, perdoe e seja perdoado". Os potentes diálogos espalhados nas
duas horas de filme não aspiram a uma lição tão sacra como essa hipoteticamente
levantada. O que se tem na tela é o retrato desbotado de seres batizados na
intolerância com o outro. É a fraternidade resumida numa insensível frase de
uma das irmãs que diz: "Somos irmãs por acidente genético". Frase
cheia de lama, indesejada.
Nesse lamaçal familiar, fugir da
fina camada de barro é exigência. Sair dessa sujeira é o esclarecimento de que
se identificar, mesmo parcialmente, com o filme pode ser, a princípio, um choque.
Segundos depois, porém, percebemos o quão somos docemente amargos, humanos.
Notamos que no álbum de família temos, querendo ou não, um retrato roto e
amarelado.
Vitor Miranda
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