domingo, 30 de março de 2014

Lars escreve certo por linhas tortas

Sair do conforto da linearidade não é para todos. Abandonar o que pensamos, condicionados ou não, força-nos a tentar uma das máximas de Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa) "aprender a desaprender". Incorporamos uma série de costumes ligados ao cultural ou à moralidade. Muito do que nos é passado pode e deve ser contestado. Ao assistir recentemente ao tão esperado e já polêmico filme Ninfomaníaca, volume I e II, de Lars von Trier, foi nítido ilustrar tudo isso que afirmei no começo desse texto.
            Lars jorra no filme diversos pensamentos, preconceitos e anseios de uma sociedade que ainda tenta ocultar seus próprios defeitos. A câmera mostra o que os olhos do cotidiano cegam por vontade ou alienação.
            Metáforas dão um magnífico alicerce ao filme. Se tudo ali fosse literal, para nossa tristeza e um empobrecimento cinematográfico, teríamos um documentário. Não quero dizer que documentários não prestam, não têm qualidade. Apenas são um gênero não combinável com von Trier.
            Vi poucos filmes dele. Vejo nesse, de fato, um artista. E nem comento aqui a costura genial das diversas intertextualidades no filme que passam, por exemplo, pelas artes plásticas, filosofia e música.
            Uma grande obra abre-se para leituras diversas. Ninfomaníaca é um exemplo. As quatro horas de filme, divididas nos dois volumes, convidam-nos para um olhar crítico perturbador.
            Acredito que o título engana quem se contenta com o conceito dele. A narrativa não protagoniza o vício feminino por sexo. Pelo contrário, expõe o vício masculino. Homem, a maioria, não diz "não" ao que mais o determina como macho. Há uma predisposição para olharmos a mulher como a sem vergonha, tarada, vagabunda, imoral etc. E quanto ao homem?
            O sexo no enredo é o combustível para revelar o machismo, aceito pela moral implícita ou explícita.
            Em um país como o Brasil, onde uma recente pesquisa indica que 65% dos entrevistados julgam a mulher como culpada pela violência sexual recebida, Ninfomaníaca é um prato cheio aqui para nos atestar o machismo e a mentalidade moralista. Recusamos a crítica democrática entre os sexos. Quem não presta é ela, ora!
            Estou até agora batendo palmas para Lars von Trier.


            Vitor Miranda

4 comentários:

Anônimo disse...

Amigo,

Ótimo texto que só faz aumentar a vontade de quem ainda não viu.
Confesso que já sabia que o filme não seria aquilo que aparenta. É a estética do Lars, parece.
Comentei há um tempo que Ninfomaníaca seria um excitante filme pornô da mesma forma que Dançando no escuro é um alegre musical.
Aparentemente, não errei muito rs.
Parabéns pelo texto, Vitinho. Falou sobre os pontos altos do filme sem dar spoilers.
Compartilhado no Facebook, claro.

Beijos
Nat

Vitor Miranda disse...

Dizer sem dizer é uma estética possível só para seletos artistas. O Lars está entre eles.
Obrigado pelas palavras, Nat.
Volte mais vezes aqui no blog. A você deixo a catraca livre.
Beijos

Marcelo disse...

O único que vi foi Melancolia. Às vezes penso que não deveria ter visto. Mesmo sendo aterrorizante, o óbvio do que vai acontecer tá lá exposto desde o começo do filme. Talvez da vida. Ainda me perturba. Depois dessa análise, vou assistir esse também.

Vitor Miranda disse...

Se viu Melancolia e ele te perturbou, Marcelo, então realmente você deveria ter assistido. Os filmes do Lars realmente procuram perturbar, tirar do conforto. Melancolia e Ninfomaníaca, assim como Dogville (são os que vi do Lars) são excelentes. O diretor tem até opiniões que discordo, no entanto a arte dele é de alto nível. Veja Ninfomaníaca. Gostará. Há metáforas e intertextualidades maravilhosas.