De um lado para o outro, Baltazar movimenta a lixa sobre a madeira. O pó escorre no ar e deixa seu odor quase maduro. Penetra-lhe o cheiro uniforme no nariz. Cheiro costumeiro, odor de vinte anos de profissão, eflúvio inodoro.
O trabalho meticuloso sobre o pedaço de árvore morta, servirá para um corpo frio, sem vida. Na cidade, todos dizem: “Os caixões do Baltazar são os melhores.” Vaidade desnecessária. Corpo inerte precisa só de um cobertor de terra, a madeira é um mero transporte até o cemitério.
Pedaços de lixa e madeira avolumam-se num canto do salão, onde o calor do dia dobra sua temperatura sob as telhas finas. Baltazar despejando o suor sobre a pele empoeirada, bate um prego, cria o barulho sobre a madeira que começa a dar forma ao fúnebre ganha pão. Deitado, em dose exata de sono, um corpo cairá sobre esses pregos, madeira e restos de pó vegetal.
Senta-se num banco. Descansa Baltazar. O cigarro barato na mão é aceso e leva o tabaco a ele. Quatro da tarde é um bom horário para se descansar, aguardar com expectativas o momento de ir embora do trabalho. É o que faz Baltazar, pobre, sério e barateiro construtor de caixões.
Enquanto os minutos lhe presenteiam com o descanso merecido, e num cantinho do salão um rádio toca uma música antiga, palavras e reflexões caem em seu pensamento. Coisas nunca pensadas no trabalho.
O caixão que nasce, quem será seu dono? Se a pessoa que o ocupar for desfigurada, os veladores não verão as formas exatas e desenhadas do interior. A morte deverá escolher um bom fim ao sujeito que descansará nele. Um ataque cardíaco seria uma excelente maneira, não traria nenhum motivo para que o lacrasse. É preciso que as pessoas não se privem de suas medidas e detalhes exatos. É um caixão sem defeitos.
Quanto carinho nesse novo caixão. Baltazar pegou a melhor parte da madeira, usou a delicadeza do escultor para detalhá-lo e passou verniz verdadeiro ao invés de passar produtos enganadores. Para ele, suas mãos produziram uma grande arte.
Caixão, quem merecerá seu leito, rico ou pobre? Mais acabamentos lhe dou? Se vender aos pobres, terá um preço baixo, se vender aos ricos, preço alto. Mas em minha incapacidade de suposições, não consigo calcular seu preço. Há homens ricos que não valem nada, desprezíveis criaturas que não merecem nem ser enterradas, a eles não o vendo. Terra a esse tipo de gente é pecado sem perdão. Não se pode negar que há pobres assim também, logo, a eles não o vendo. Em silêncio, Baltazar ouve esses seus pensamentos, idéias que falam alto sem necessidade de boca.
Levanta-se e caminha ao caixão. Sobre o cavalete, alisa a madeira, dessa vez sem a lixa, apenas com as mãos grossas de sujeira. Ao deslizar a mão, sente na madeira certas sensibilidades carnais. A razão é ilógica para a novidade que se sente. Baltazar sente na superfície do caixão a sensação de acariciar a pele feminina. É lisa e quente, perfume florestal. A inércia da madeira o conforta, absorve no contato certas emoções abstratas e cruas. Nasce nele um pequeno universo recheado de prazeres.
O preço da obra de Baltazar já não mais existe, se é que existia para ele. Paralisaram-se todas as regras anteriores do trabalho diário que lhe paga as despesas. Os sentimentos de uma criação nunca são revelados por completo. Quando se depara com eles, acontece o que aconteceu com Baltazar, a criação torna-se o tudo.
Magro ou gordo, dentro de você esses porcos não entrarão. Ninguém o entende, não percebem o que você é. Sim, um caixão aos olhos insensíveis. Pupilas cegas que pensam que a imagem é sua forma real. Seu conforto será reconhecido, não ficará embaixo da terra sendo mastigado por vermes sem ninguém saber seu mais sublime segredo. Você transborda um prazer suave, quase brisa, quase água de lago – diz Baltazar sozinho ao olhar fixamente o vácuo do caixão.
Com cuidado, Baltazar, enquanto murmura certas palavras, dá os últimos retoques, acabamentos buscados por todos os criadores para atingir uma perfeição sempre insatisfeita.
À medida que finaliza o caixão, cresce a admiração por seu trabalho. Baltazar sem saber resistir, acaricia cada espaço da madeira, respira o ar da serragem como se fosse um raro perfume. O que se nota nele, não é uma paixão, mas algo que foge de qualquer explicação. O mundo é ele e o caixão.
As noções das horas se foram. Dia ou noite, tanto faz, o sentimento, quando forte, cria um mundo sem ordem, faz de pequenos minutos uma ampulheta eterna, escoando cada grão de areia em velocidade mínima.
Ah, caixão tão sedutor, Baltazar está para você, só para você.
Psicólogo ou algum religioso teria que opinião ao ver Baltazar nessa relação com o caixão? Impossível qualquer diagnóstico.
Grande espanto tomaria conta de quem visse Baltazar agora. Ele não se deu conta que o ontem virou hoje. Continua sujo, com a mesma roupa e o maço inacabado de cigarro comprado um dia antes. Fome não tem, sede muito menos. É homem duro em sentimento novo.
Com os olhos abertos, se vira. Está deitado, apertado entre madeiras, cheio de serragem recém-nascida. Ele se encontra dentro do caixão tão admirável. Dormiu durante toda a noite nele. Levanta o corpo, senta-se e apóia-se com as mãos e se vê no caixão sobre dois cavaletes.
Dos olhos de Baltazar, início de lágrimas. A cada lágrima escorrida, uma sensação estimulante ao riso. Ri, ri muito, sem parar, sem pausar o encontro do choro com as risadas altas. Ele sabe, somente ele sabe que, esse caixão tão bem construído e estimado, não pode ser de mais ninguém, a não ser dele. O preço, não há; Números não existem para que se calcule qualquer suposição de valor financeiro.
Quando esse caixão for para a terra, lá estará Baltazar juntamente com ele.
Vitor Miranda